Carlos Starling
Carlos Starling
SAÚDE EM EVIDÊNCIA

Abril

O outono desenha uma cidade que aos poucos se revela. As folhas douradas dançam no ar como confetes de um carnaval tardio

Publicidade

Mais lidas

As nuvens lambem as montanhas dos meus horizontes. Tem chuva na favela da Serra e nas mansões do Mangabeiras. Em breve chegará por aqui. Sinto o vento de chuva e percebo a valsa elegante dos eucaliptos. Os urubus já se recolheram. Turbulência não é com eles.

Abril me alegra e assusta. Enchentes lavam o mundo e levam gente e sonhos.

Vejo daqui de cima desse penhasco o ado esquartejado. Parte enterrado no Bonfim, parte na Colina. Seguro a lágrima que tenta escapulir dos olhos. Seguro para não perder o tom. Desvio o olhar para o que emociona e não faz diferença, mas alegra e, despretensiosamente, banaliza a existência. Vejo o palco de dribles desconcertantes, de redes que ainda balançam na minha memória e fazem esquecer as travas de chuteira na canela da alma.

Vejo ao longe, aviões decolando no vazio. Levam gente para o mundo. Uns para encontrar alguém, outros para ninguém. Viajam com destino certo, sem saber para onde. Mesmo assim decolam. Penetram nas nuvens, as mesmas que lambem as montanhas. Somem rapidamente ao invadir o azul logo acima. Uns têm medo; outros, desprezo. Não percebem a turbulência que assusta os urubus. Seguem o rumo que as turbinas mandam.

Lá embaixo, a gente anda, corre e escorre. Decompõem aos poucos e não percebem o processo lento que desgasta os pneus e a carne. Melhor assim, dói menos. Abril a deixando o seu rastro de barracos boiando no Arrudas, que, morto, serpenteia a cidade, exalando a podridão injusta da desigualdade, vergonhosamente escondida em galerias sepultadas por cimento e asfalto. Os carros am sobre o vácuo da injustiça e do absurdo, alheios aos fatos. Simplesmente aceleram e não olham para trás e nem sobre quem estão ando.

Desse penhasco, próximo às estrelas, tento agarrá-las. Mas abril não deixa. Me acerta em pleno voo. Logo ali fica o inverno. É tempo de guardar a lenha e tomar vacina. Afinal, ainda tenho ninho para aquecer e flores para entregar. Vacinas nos dão dias e a chance de continuar sonhando, enxergando e denunciando as contradições dos homens e do mundo.

O outono desenha uma cidade que aos poucos se revela. As folhas douradas dançam no ar como confetes de um carnaval tardio. Os ipês roxos resistem. Nas calçadas, as folhas secas estalam sob os os apressados dos que não sabem onde pisam.

Na Serra, o vento esculpe histórias. Carrega o perfume dos poucos cambucás que ainda teimam em sobreviver e o cheiro da terra molhada. Maritacas cruzam o céu em revoada. Seu canto ecoa no concreto de areia e gente. O tempo escorre nas águas de abril. As últimas jabuticabas se despedem e dão boas-vindas às mexericas que colorem de verde-amarelo as bancas do Mercado Central.

Nas escolas, as crianças desenham sóis sorridentes e nuvens de algodão, enquanto lá fora a chuva, seguida por uma fina neblina, nos apresenta a “Belorilondres”, uma cidade imaginária que só existe nos nossos sonhos. A neblina se dissipa e a realidade volta a inundar nossos olhos. Os guarda-chuvas formam uma coreografia desajeitada nas ruas estreitas do centro, um balé improvisado de cores e encontros apressados. Os jardins começam seu lento adormecer. As dálias e os crisântemos resistem bravamente, mas sabem que seu tempo está chegando ao fim. As hortênsias mudam de cor, como se ensaiassem diferentes vestidos para o baile do inverno que se aproxima.

Na Praça da Liberdade, os bancos molhados guardam histórias de amores de verão que começaram e terminaram sob árvores centenárias. O relógio da praça marca as horas com a mesma precisão de sempre, indiferente às mudanças de abril. Das janelas dos hospitais, os doentes observam o balé das folhas que caem, contando os dias em comprimidos e agulhas. A vida pulsa diferente aqui, onde cada amanhecer é uma pequena vitória sobre o tempo que insiste em não ar.

Assim, abril vai se despedindo, depois de deixar suas marcas próprias de outono. Nas ruas, nas praças, becos e avenidas, a vida segue seu curso. Do alto do meu penhasco, sou testemunha silenciosa dessa transformação, guardião de memórias que o vento de abril tenta, em vão, carregar para longe. O sino da igreja anuncia cinco horas. As noites chegam mais cedo em abril. Trazem consigo o frio de maio que já se anuncia. É hora de descer do penhasco e voltar para o ninho que ainda precisa de calor. Amanhã será o último dia de abril, mas ainda será abril, com suas promessas de chuva, suas folhas douradas e seus segredos sussurrados pelo vento nas esquinas do meu Belo Horizonte.

À noite, as luzes da cidade pintam a paisagem de um laranja difuso. Das janelas dos apartamentos, milhares de vidas acontecem simultaneamente, cada uma com sua própria história de abril. Nos bares da Savassi, copos tilintam em brindes à vida, enquanto violões solitários dedilham canções que falam de amor e saudade. O vento frio que desce da Serra traz consigo promessas de um inverno que se aproxima, mas, por enquanto, ainda é abril, e abril tem seu próprio jeito de ser eterno.

Siga nosso canal no WhatsApp e receba notícias relevantes para o seu dia

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

Tópicos relacionados:

estrelas horizontes inverno outono

Parceiros Clube A

Clique aqui para finalizar a ativação.

e sua conta

Se você já possui cadastro no Estado de Minas, informe e-mail/matrícula e senha. Se ainda não tem,

Informe seus dados para criar uma conta:

Digite seu e-mail da conta para enviarmos os os para a recuperação de senha:

Faça a sua

Estado de Minas

Estado de Minas

de R$ 9,90 por apenas

R$ 1,90

nos 2 primeiros meses

Aproveite o melhor do Estado de Minas: conteúdos exclusivos, colunistas renomados e muitos benefícios para você

Assine agora
overflay