
Oswald de Andrade surge tóxico e fascinante em nova biografia de Lira Neto
Machista, adúltero em série, dono de ironia brutal e homem à frente de seu tempo, revela "Oswald de Andrade: Mau selvagem", que será lançado na terça (11/2)
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Siga noUm homem à frente de seu tempo, que defendeu o matriarcado e se opôs ao colonialismo. Mas também um homem de seu tempo, adúltero serial que traiu as sete mulheres com quem se casou – e não via problema algum em se relacionar com adolescentes. A contradição é inerente à experiência humana, mas pode-se dizer que Oswald de Andrade (1890-1954) foi além dos limites.
Depois de quatro anos debruçado sobre esse personagem imperfeito, Lira Neto, que já biografou Getúlio Vargas, Maysa e Padre Cícero, volta à carga com “Oswald de Andrade: Mau selvagem”, que chega nesta terça (11/2) às livrarias.
A epígrafe “Infelizmente no Brasil não se consegue estudar alguém sem o colocar num trono ou num patíbulo”, do próprio Oswald, o perseguiu no processo deste livro?
Uma vez me perguntaram se eu não tinha medo de me decepcionar com o personagem. Respondi que, felizmente, todos os meus personagens me decepcionaram. São seres humanos, portanto, imperfeitos. Escolho um personagem sempre na perspectiva de ser alguém que me inquiete, me fascine. Não escolheria nenhum personagem que, de antemão, imaginasse que era o que convencionamos chamar de um homem bom.
De que maneira ele te decepcionou?
O mesmo homem que pregava a utopia do matriarcado era um homem profundamente machista. Na linguagem de hoje, diríamos que é um homem tóxico.
Ninguém a por sete casamentos impunemente.
Exatamente. Em todas as situações ele foi absolutamente infiel, um homem incompatível com o exercício da monogamia. Dizia ser monogâmico em série, mas ele era um adúltero em série. Machucou muitas mulheres. A outra coisa era esse humor que sempre o caracterizou, uma ironia agressiva, por vezes brutal. Não é à toa que ele termina na solidão literária. O Antonio Candido foi um dos últimos e únicos amigos, todos os demais se afastaram. Se isso me decepciona, também me fascina: essa personalidade tão rica, ambígua, um homem absolutamente genial onde caberia até o velho chavão de o homem à frente do seu tempo.
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No livro, você dá muito mais atenção ao Manifesto Antropófago (1928) do que à Semana de 1922. Por quê?
É claro que conheço hoje muito mais Oswald de Andrade do que conhecia antes. Mas a minha imagem dele sempre foi algo superior à Semana. O que veio antes e o que veio depois são muito mais interessantes da perspectiva biográfica. Porque antes da Semana, Oswald não tinha nada de moderno. O primeiro livro dele, junto com o Guilherme de Almeida, são duas peças em francês simbolistas (“Mon coeur balance” e “Leur âme”, de 1916). O jornal que ele editava, O Pirralho (1911-1918), é satírico, publicava charges contra figurões da República. Mas do ponto de vista literário, publicava versos de poetas simbolistas, parnasianos e até românticos. Essa conversão dele se dá ali a partir de 1918. Por outro lado, o período pós-modernista é riquíssimo do ponto de vista da trajetória biográfica. A relação dele com Pagu, a aproximação com o Partido Comunista, as fugas do casal para se esconder da polícia política do Estado Novo... Teve que morar na periferia, escondido, e é nesse momento que ele, até então milionário, fica muito pobre. Com a crise de 1930, os preços dos terrenos – o cerne da fortuna familiar, seu pai era dono de praticamente toda a Zona Oeste de São Paulo – caíram muito. Ele vai recorrer a hipotecas, agiotas e empréstimos bancários. Chega o momento em que essa dívida chega no nível do impagável. E há um período mais interessante, posterior a tudo o que a gente está falando, em que ele mantém contato, já nos anos 1940, com a nova geração de intelectuais paulistas oriundos da universidade: Antonio Candido, Paulo Emilio Salles Gomes, Décio de Almeida Prado. O Oswald, como todos de sua geração, era autodidata. Ali ele percebe as lacunas da própria formação. Nesse momento ele começa a ler filosofia, história, crítica literária, ao ponto de escrever uma tese para concorrer à livre docência na USP (não foi bem-sucedido). Resumi-lo, portanto, somente ao ativista da Semana de Arte Moderna é muito pouco.
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O erotismo é intrínseco à persona do Oswald, e você já o demonstra na primeira infância dele, inclusive com várias citações do próprio.
Oswald de Andrade era movido pela força vital do sexo. Tinha uma vida sexual muito ativa e o erotismo, a sexualidade, estão presentes na sua obra o tempo todo. Toda a obra dele, de certa forma, é o que chamamos hoje de autoficção. A partir da experiência pessoal, ele escrevia literatura. E aí, o grande desafio do biógrafo é saber o que é biográfico e o que é ficcional. Como se faz isso? Com base na documentação. O Oswald deixou um acervo riquíssimo, que poderia ter sido ainda mais precioso não fosse ele um sujeito tão disperso. Mesmo assim, ele deixou mais de 4 mil documentos, que hoje estão sob a guarda do Centro de Documentação Alexandre Eulálio da Unicamp. Foi ali a mina que me forneceu a matéria-prima da pesquisa. Em cadernos, foi interessante perceber o processo de criação dele. Por exemplo, as primeiras versões de “Memórias sentimentais de João Miramar” (1924) eram uma literatura absolutamente convencional. Ele dizia que um romance precisava ser reescrito várias vezes. Nesse processo de reescrita, ele começa a introduzir o que comparo a um processo de decomposição cubista. Ele acaba adaptando a técnica cubista dos quadros à literatura, fazendo o desmonte do texto. Isto tornou muitas vezes, e para muita gente na época, o texto quase incompreensível.
Nova biografia de Oswald de Andrade chega às livrarias em 11 de fevereiro
“OSWALD DE ANDRADE: MAU SELVAGEM”
De Lira Neto
Companhia das Letras
528 páginas
R$ 129,90
R$ 49,90 (e-book)