Filme sobre tortura durante o regime militar tem sessão em BH
Ex-militantes do Colina participam nesta quarta (26/1) da exibição de "Carta de Linhares: A tortura revelada", sobre os métodos repressivos da ditadura
Jorge Nahas é um dos ex-integrantes do grupo guerrilheiro Comando de Libertação Nacional (Colina) que dá depoimento para o filme do jornalista Marcelo os crédito: Divulgação
Se de Juiz de Fora partiu a tropa do general Olímpio Mourão Filho rumo ao Rio de Janeiro – ação que antecedeu o golpe de 1964 e levou à deposição do presidente João Goulart –, foi também do município mineiro que saiu a Carta de Linhares, documento de denúncia das torturas praticadas pelo regime militar contra civis.
Assinado por 12 integrantes do Colina (Comando de Libertação Nacional), grupo guerrilheiro fundado em Belo Horizonte no final da década de 1960, o texto estruturado por Ângelo Pezzuti alcançou projeção internacional ao denunciar a violência física praticada contra os militantes.
Entre os métodos de tortura descritos, destacavam-se o pau de arara, golpes de palmatória e choques elétricos. A carta foi redigida em dezembro de 1969, durante a prisão dos membros do grupo na Penitenciária de Linhares, em Juiz de Fora. Ainda hoje, os crimes descritos no documento são negados pelas Forças Armadas.
O jornalista Marcelo os leu o documento pela primeira vez em 2012, quando as 28 páginas contidas em dossiê foram encaminhadas à Comissão Nacional da Verdade, em Brasília. Natural de Juiz de Fora, ele decidiu produzir um documentário que contasse a história por trás da carta, por meio de testemunhos dos ex-integrantes do Colina.
Primeira pessoa
“Quando o filme estreou em Juiz de Fora, mesmo as pessoas engajadas nas lutas políticas da época se surpreenderam. Uma coisa é ouvir falar sobre as torturas e a crueldade do regime, outra é ouvir o que aconteceu da boca dos atingidos”, afirma os.
O documentário “Carta de Linhares: A tortura revelada”, lançado em 2024, será exibido nesta quarta-feira (26/2), no Instituto Helena Greco de Direitos Humanos e Cidadania, em Belo Horizonte. Após a exibição, haverá debate com o diretor, os ex-militantes do Colina Jorge Nahas e Marco Antônio Meyer, e Aloísio Morais Martins, fundador do jornal “De Fato”, órgão que publicou a Carta de Linhares no Brasil, em 1978.
"Ainda estou aqui" se tornou fenômeno de bilheteria no Brasil e vem chamando a atenção do público e da crítica no exterior. Recebeu vários prêmios, como o de Melhor Roteiro no Festival de Veneza, para Murilo Ha e Heitor Lorega (foto); o Globo de Ouro de Melhor Atriz em Filme de Drama, para Fernanda Torres; Melhor Filme Internacional no Festival de Palm Springs, nos EUA; Melhor Atriz em Filme Internacional no Critics Choice Awards, nos EUA, para Fernanda Torres; Melhor Filme na 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo; Melhor Filme no Festival Internacional de Cinema de Vancouver, no Canadá; Melhor Filme no Festival de Cinema de Mill Valley, nos Estados Unidos.
Alberto Pizzoli/AFP
Em clima de Copa do Mundo, o Brasil torce por "Ainda estou aqui" e Fernanda Torres. A surpreendente vitória da brasileira como Melhor Atriz em Filme de Drama no Globo de Ouro foi muito comemorada no país. Fernanda não esperava o prêmio americano, inédito para o Brasil. Surpresa e feliz, ela homenageou a mãe, Fernanda Montenegro, ao receber o troféu em 5 de janeiro, em Los Angeles. A brasileira concorreu com as estrelas Nicole Kidman, Angelina Jolie, Tilda Swinton, Kate Winslet e Pamela Anderson.
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O elenco de "Ainda estou aqui" conta com um jovem talento mineiro: a atriz Bárbara Luz faz o papel de Nalu, filha do meio do casal Paiva, amiga do então adolescente e futuro cineasta Walter Salles. Bárbara é filha de Eduardo Moreira e Inês Peixoto, atores do Grupo Galpão. Ela mora em Paris, onde estuda teatro na Sorbonne e trabalha como baby sitter.
Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press
Fernanda Montenegro arrebatou público e crítica em sua pequena, mas muito marcante, participação em "Ainda estou aqui". Ela faz o papel da idosa Eunice Paiva, que enfrentou o Alzheimer por 14 anos e morreu em 2018, aos 86 anos. Eunice, até então dedicada dona de casa, reagiu à morte do marido e se transformou em respeitada advogada especializada em direitos indígenas. Sony Pictures/divulgação
Selton Mello, intérprete de Rubens Paiva no filme, comemorou as indicações nas redes sociais. Sony Pictures/divulgação
Fernanda Torres faz o papel de Eunice Paiva, atuação que lhe rendeu o Globo de Ouro de Melhor Atriz em Filme de Drama, em janeiro de 2025. O longa estreou no Festival de Veneza, na Itália, em setembro de 2024. Fernanda mostra Eunice contida, determinada a não deixar os filhos sucumbirem diante da tragédia e lutadora incansável pelo esclarecimento do assassinato do marido por agentes do Estado
Sony Pictures/divulgação
O cineasta Walter Salles frequentava a casa dos Paiva no Leblon e se lembra de vê-la fechada em janeiro de 1971, depois do sequestro de Rubens. Tinha 14 anos e era amigo de Nalu, filha de Eunice e Rubens Paiva. O livro "Ainda estou aqui" emocionou o diretor. Em 2017, ele decidiu filmar a história de Eunice. As filmagens (foto) ocorreram em 2023.
Sony Pictures/reprodução
Em 2015, Marcelo Rubens Paiva, filho de Eunice e Rubens Paiva, publicou o livro "Ainda estou aqui", contando o drama da família após o desaparecimento do pai, levado por agentes da ditadura militar em 1971. Eunice lutou muito para que o Estado se responsabilizasse pelo assassinato do marido. O atestado de óbito do ex-deputado só foi emitido em fevereiro de 1996. Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade concluiu que Rubens foi torturado e morto nas dependências do Destacamento de Operações e Informações (DOI) do I Exército, no Rio de Janeiro. Posteriormente, Eunice enfrentaria o Alzheimer por 14 anos. O escritor foi ao Festival de Veneza, em setembro de 2024, para o lançamento do filme.
Marco Bertorello/AFP
O filme "Ainda estou aqui" conta a história da família de Eunice e do ex-deputado Rubens Paiva, destroçada pela ditadura militar. Em 1971, o parlamentar cassado foi levado de casa no Leblon, no Rio de Janeiro, por agentes do governo e nunca mais voltou. Seu corpo jamais foi encontrado. Nesta foto, Rubens e Eunice estão com os filhos Vera, Eliana, Marcelo, Ana Lúcia e Maria Beatriz, além de dona Cici, mãe do ex-deputado.
Objetiva/reprodução
Na opinião de os, “Carta de Linhares” dialoga com o longa “Ainda estou aqui”, de Walter Salles, uma vez que discute a impunidade dos crimes cometidos durante o período ditatorial. Assim como a violência sofrida pelos militantes do Colina não foi reconhecida, a tortura e morte do ex-deputado Rubens Paiva foram, por anos, negadas pelo Estado.
“‘Ainda estou aqui’ teve tamanha repercussão porque parte de algo muito singelo: a família. No filme, não há histórias descontextualizadas da realidade, mas sim o retrato de pessoas que sofreram violência tremenda. Percebemos com o filme de Salles até onde a crueldade da ditadura poderia chegar”, afirma o diretor.
Ele conta que o projeto do documentário ficou “na gaveta” durante o governo Bolsonaro (2018-2022) devido tanto às paralisações e desmontes de instrumentos de incentivo à cultura – como o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), que teve corte de 43% durante a gestão –, quanto pela dissonância do projeto com as posições ideológicas do então presidente.
Ex-militar, Jair Bolsonaro por diversas vezes exaltou o golpe de 64. Em 2019, chamou Brilhante Ustra, coronel condenado por tortura durante o regime, de “herói nacional”. Já em 2022 afirmou que o Brasil seria uma “republiqueta” sem as obras do governo militar.
“Precisei esperar o momento adequado para viabilizar o projeto. Um tema como a Carta de Linhares não iria para a frente naquele contexto. Haveria repressão ideológica”, afirma os.
A prisão dos membros do Colina ocorreu em 29 de janeiro de 1969, quando a polícia invadiu uma casa na rua Atacarambu, em Belo Horizonte, onde os integrantes estavam reunidos. Na ação, dois policiais morreram e o militante Maurício Paiva ficou ferido.
Conforme depoimento do militante Jorge Nahas, os presos foram colocados contra um muro e teriam sido fuzilados, se não fosse a interferência do delegado Luiz Soares da Rocha, comandante da operação e chefe do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), que evitou um massacre.
“Fomos uns dos primeiros presos políticos nessa nova fase da repressão, que ainda não estava estruturada. Meses depois, certamente teríamos tido outro destino”, declarou Nahas no documentário. O embate entre a polícia e o Colina ocorreu pouco mais de um mês após a promulgação do Ato Institucional nº 5, que fortaleceu o aparato repressivo do regime, tornando a censura e a tortura práticas comuns contra opositores.
Fernanda Torres participou de "Jogo de cena" (2007), dirigido pelo aclamado documentarista Eduardo Coutinho. Vinte e três mulheres foram filmadas no Teatro Glauce Rocha, no Rio de Janeiro, falando da própria vida. Com base nos depoimentos, atrizes interpretaram as histórias a seu modo, inclusive acrescentando experiências pessoais a elas.
Matizar Filmes/reprodução
Série de comédia de imenso sucesso na TV Globo, "Os normais" (2001-2003) deu origem a dois filmes homônimos, dirigidos por José Alvarenga Júnior, com roteiro de Fernanda Young e Alexandre Machado. Sucesso de bilheteria, os longas de 2003 e 2009 acompanham o casal Rui (Luiz Fernando Guimarães) e Vani (Fernanda Torres) metidos em confusões e situações esdrúxulas. Globo Filmes/reprodução
Fernanda Torres brilhou no divertido "Saneamento básico – O filme" (foto), de Jorge Furtado. O cineasta gaúcho e sua trupe (Fernanda, Wagner Moura, Lázaro Ramos, Camila Pitanga e Paulo José, entre outros) conseguiram fazer graça com tema espinhoso: a falta de esgoto numa pequena cidade interiorana.
Casa de Cinema de Porto Alegre/reprodução
As duas Fernandas – Torres e Montenegro – atuaram em "Gêmeas" (1999) e "Casa de areia" (2005, foto), filmes de Andrucha Waddington, marido de Torres. A família voltou a se reunir no set de "O juízo" (2019), com roteiro de Fernanda Torres, direção de Waddington e Fernanda Montenegro contracenando com o neto Joaquim, filho do casal.
Conspiração Filmes/reprodução
Em 1998, o Oscar cruza pela primeira vez o caminho de Fernanda Torres. "O que é isso, companheiro?", de Bruno Barreto, concorreu ao prêmio de Melhor Filme Estrangeiro, mas foi derrotado por "Karakter", do belga-holandês Mike van Diem. Fernanda interpretou a guerrilheira Maria. Selton Mello, seu companheiro em "Ainda estou aqui", fez o papel do militante de esquerda Oswaldo.
Miramax/reprodução
O primeiro filme de Fernanda Torres com o diretor Walter Salles foi "Terra estrangeira" (1995), codirigido por Daniela Thomas. Ela faz o papel de Alex, brasileira que vive em Portugal – imigrante que enfrenta um pesadelo ao lado de Paco (Fernando Alves Pinto), outro desgarrado do Brasil da era Collor.
Video Filmes/reprodução
Aos 21 anos, jovem Nanda conquistou um prêmio cobiçado por estrelas mundiais: Melhor Atriz no Festival de Cannes, em 1986, por seu trabalho em "Eu sei que vou te amar", longa de Arnaldo Jabor sobre a dor da separação de um jovem casal. Em cena, apenas Fernanda e Thales Pan Chacon. Como gravava a novela "Selva de pedra" (era a protagonista Simone), a atriz voltou da França antes da cerimônia de premiação. Jabor recebeu a pequena palma dourada em nome dela.
Embrafilme/reprodução
Em 1985, Fernanda Torres ganhou o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Gramado por sua atuação em "A marvada carne", comédia dirigida por André Klotezel. Contracenando com Adilson Barros (foto), ela, aos 20 anos, era profissional com experiência no teatro e TV. Já havia atuado nas novelas da Globo "Baila comigo", de Manoel Carlos; "Brilhante", de Gilberto Braga; e "Eu prometo", de Janete Clair. Embrafilme/reprodução
Filha dos atores Fernando Torres e Fernanda Montenegro, Fernanda Torres nasceu em 15 de setembro de 1965. Estreou nos palcos aos 13 anos, participando da peça "Um tango argentino", de Maria Clara Machado, que comandou o Tablado, celeiro carioca de talentos. O primeiro filme, aos 17, foi "Inocência" (1983), de Walter Lima Junior. Fez o papel da interiorana Inocência, que se apaixona pelo médico Cirino (Edson Celulari, foto), a contragosto do pai.
Embrafilme/reprodução
Documento vazado
Embora não se saiba ao certo como, meses depois da prisão dos integrantes do Colina, a Carta de Linhares saiu da penitenciária para onde eles haviam sido levados – uma primeira versão do documento teria sido anteriormente confiscada pelos agentes penitenciários.
Acredita-se que algum familiar tenha tomado posse do texto, que mais tarde foi publicado e traduzido para o inglês. A carta ganhou projeção internacional, consolidando-se como importante registro de denúncia dos anos de chumbo.