Curta com Eunice Paiva é restaurado e terá exibição gratuita
"Eunice, Clarice e Thereza" traz entrevistas com a viúva de Rubens Paiva e também as de Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho, gravadas em 1979
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Antes de Marcelo Rubens Paiva contar a saga de Eunice Paiva (1929-2018) em “Ainda estou aqui” (Companhia das Letras) e Walter Salles transformá-la em personagem mundialmente conhecida com o longa homônimo, vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional, havia um jovem cineasta interessado em transformar a história da advogada e militante pelos Direitos Humanos e Indígenas em documentário, no ano de 1979. Era o carioca Joatan Vilela Berbel.
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Ele estava concluindo o curso de cinema na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM) e precisava produzir um curta, como espécie de trabalho de conclusão de curso. “Eu estava completamente sem ideia do que fazer. Dentro do ônibus, lendo jornal, vi uma matéria sobre a ação judicial que a Clarice Herzog (viúva de Vladimir Herzog) ganhou contra o Estado, responsabilizando-o pela morte do Vladimir”, lembra Joatan.
Ao lado da matéria, havia uma foto de Eunice e outra de Thereza Fiel, viúva do operário Manoel Fiel Filho, com uma nota informando que elas também pretendiam entrar com ação parecida. “Pronto. Eu tinha o filme nas minhas mãos. Não precisava nem escrever o roteiro”, diz o carioca.
Depoimentos
Joatan foi atrás das três mulheres e, depois de gravar uma longa entrevista com cada uma, lançou “Eunice, Clarice e Thereza”, condensando os três depoimentos. O curta, que foi o primeiro trabalho de um diretor que largou o cinema para trabalhar com marketing de um grande banco, foi restaurado recentemente e estará disponível gratuitamente no catálogo do Cinelimite, entre 24 de março e 7 de abril.
Em aproximadamente 15 minutos, Eunice, Clarice e Thereza contam como seus maridos desapareceram. A viúva de Rubens Paiva fala do 20 de janeiro de 1971, quando o ex-deputado foi preso por agentes do Centro de Informações da Aeronáutica (Cisa), levado para o quartel da Força Aérea Brasileira, no Rio de Janeiro, e, depois, para os porões do DOI-CODI, onde foi torturado e morto.
Ela também menciona a própria prisão, dias depois. “Tentei saber primeiro a razão daquilo tudo. A prisão do Rubens, a minha prisão, que era, para mim, um verdadeiro absurdo. Finalmente consegui saber que, naquela altura, eles estavam interessadíssimos em resolver o sequestro do embaixador suíço, do qual ainda não tinham nenhuma pista”, afirma, referindo-se ao caso Giovanni Enrico Bucher.
O diplomata suíço foi mantido em cativeiro durante 47 dias pela Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e havia fortes dúvidas – inclusive do próprio Marcelo Rubens Paiva, conforme escreveu em “Ainda estou aqui” – sobre a suposta ligação de Rubens Paiva com o sequestro do embaixador.
“Acordo de cavalheiros”
O segundo depoimento é o de Clarice. Ela já esperava que Vladimir Herzog fosse procurado pelo Exército, mais dia menos dia, o que, de fato, ocorreu no início da manhã de 25 de outubro de 1975, uma sexta-feira.
Segundo Clarice, Vladimir Herzog selou um “acordo de cavalheiros” com os agentes, combinando de se apresentar às 8h30. “Depois desse acordo, a gente foi pra casa de alguns amigos, ficamos batendo papo e, inclusive, discutindo como ele se apresentaria. Nós queríamos que tivessem testemunhas da apresentação dele, porque a gente já sabia que existiam vários casos de pessoas que simplesmente desaparecem”, conta ela.
Vladimir Herzog se apresentou ao DOI-CODI paulista às 8h30 e acredita-se que tenha morrido às 16h30 do mesmo dia.
O caso de Manoel Fiel Filho é o que menos repercutiu depois da redemocratização, mas foi amplamente divulgado na época. Operário metalúrgico e integrante do Partido Comunista Brasileiro, Manoel foi preso em janeiro de 1976, na fábrica onde trabalhava, em São Paulo. Os agentes da repressão foram até a casa onde ele morava com Thereza, vasculharam o local e garantiram à esposa que a prisão duraria um dia apenas.
No dia seguinte, o Exército procurou Thereza para informar que Manoel teria se enforcado com as próprias meias. Os militares, no entanto, ignoraram que o operário calçava chinelos quando foi preso.
“Eunice, Clarice e Thereza” não traz novidades a nenhum dos três casos, nem mesmo à época em que foi gravado – os jornais cobriam amplamente as histórias, e a repressão já se tornava menos forte do que nos anos anteriores. O resgate, no entanto, é importante por trazer à tona fatos de um ado não tão distante, no entanto desconhecido por muitos brasileiros.
“Nós estamos vivendo no país um momento de miséria política terrível. A gente precisa urgentemente fazer ações para defender aquilo que é mais caro para a sociedade, que é a democracia”, afirma Joatan.
Embora as atenções ultimamente estejam voltadas para o filme de Walter Salles, Joatan brinca: “Acho muito legal e importante essa repercussão do filme do Walter, mas eu gosto de dizer: ‘Olha, ainda estou aqui’”.
“EUNICE, CLARICE E THEREZA”
(Brasil, 1979, 15 min. De Joatan Vilela Berbel) – Documentário. Estreia no catálogo do Cinelimite em 24 de março. Ficará disponível gratuitamente até 7 de abril.