8 de março: 5 cozinhas profissionais em BH onde só trabalham mulheres
Chefs explicam por que preferem ter equipe 100% feminina na cozinha
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Siga noHá quem encha a boca para dizer que “lugar de mulher é na cozinha”. A sentença, proferida em tom pejorativo, pode reduzir a importância feminina na sociedade a uma posição de inferioridade. Mas, no âmbito da gastronomia, a máxima machista acaba se tornando emblema da conquista de um terreno profissional há muito tempo dominado por eles.
Ainda que geralmente imbuídas da função de cozinhar e cuidar da alimentação da família dentro de casa, no ambiente culinário profissional a presença de mulheres nem sempre é bem vista e se depara com certa resistência, mesmo que existam avanços. Uma evidência em particular quando se trata de cargos de comando.
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Não é difícil encontrar quem diga que a atmosfera de cozinhas formadas por homens seja um tanto quanto tóxica. Para a mulher que adentra esse ambiente, mais que os desafios do próprio ato de cozinhar, outra dificuldade é lidar com assédios morais e sexuais, que não raro acontecem, assim como a falta de reconhecimento.
É um contexto que não esconde a dicotomia. Se considerada a presença em cursos de formação em gastronomia, as mulheres lideram, mas têm que lidar com barreiras para conquistar lugar nas cozinhas profissionais. Com talento e competência, avessas a qualquer empecilho, muitas vêm vencendo tabus, com destaque no mercado gastronômico brasileiro.
Pesquisa nacional
O primeiro estudo nacional sobre a representação de mulheres na gastronomia foi realizado em 2022 pela Ipsos em parceria com a Stella Artois, com o objetivo de promover a equidade de gênero no setor, fomentar o empreendedorismo feminino e combater o machismo e a objetificação da mulher.
A pesquisa foi dividida em duas etapas, com 500 entrevistas em cada uma. Na primeira parte, foram entrevistados homens e mulheres responsáveis por estabelecimentos de alimentação e, na segunda, responderam apenas mulheres que trabalham em negócios na área da gastronomia, entre proprietárias, sócias, chefs, subchefs, cozinheiras, auxiliares de cozinha, garçonetes, atendentes e operadoras de caixa.
Os resultados mostram que 46% das entrevistadas percebem que a maioria dos chefs renomados são homens porque eles têm mais oportunidades de trabalho, 36% concordam que muitas chefs já sofreram assédio moral e/ou sexual e mais de um terço das entrevistadas já teve suas capacidades questionadas apenas por se identificarem pelo gênero feminino. Outro dado: uma em cada duas participantes observa que a cozinha doméstica ainda é vista pela sociedade como um trabalho das mulheres.
A pesquisa reforça outros índices. Conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2019, as mulheres lideram 96% das cozinhas domésticas no Brasil. Por outro lado, apenas 7% das cozinhas profissionais nos restaurantes mais importantes do Brasil têm liderança feminina, de acordo com estudo de 2022 da Chefs Pencil, revista on-line de culinária internacional.
Diante deste cenário, é cada vez mais comum encontrar cozinhas majoritariamente femininas em bares e restaurantes. Para quem também é conhecida por ser multitarefas e especialista em agir diante de situações diversas, a insegurança que vem das estatísticas pode ser superada vislumbrando a certeza de que existem pessoas com vontade de mudar essa realidade.
Time solidário
O Cozinha Santo Antônio foi inaugurado há cinco anos, 40 dias antes da pandemia. A princípio, o projeto não era exclusivamente feminino, mas, com a crise sanitária, os homens acabaram se afastando.
“amos a pandemia juntas. Primeiro no modelo delivery, depois abrindo aos poucos. A energia da cozinha é diferente por si só. Entendi que era um lugar para trabalhar com mulheres”, diz Juliana Duarte, graduada em história e com trajetória em agência de publicidade.
Além dela, a subchef, a gerente, a líder de produção, cinco cozinheiras e uma garçonete formam o time feminino. Apenas dois homens completam a equipe no salão como garçons.
Para Juliana, a comunicação entre mulheres é mais fácil. Todas entendem as necessidades umas das outras, são solidárias, conta.
“Uma equipe só de mulheres muda o ritmo, a forma de trabalhar, a organização, a conversa é diferente. Existem problemas, conflitos, mas, para resolver, a gente senta e conversa. A presença masculina é diferente. Não tinha mais espaço para homens”, relata a chef, que descreve o estilo do restaurante como cozinha de casa, “uma comida que cuida, o que transita bem no universo feminino”.
As mulheres também marcam presença às quintas-feiras à noite, dias da Quinta dos Bons Encontros, que Juliana coordena ao lado da gestora cultural Lena Cunha e da artista do Armatrux Raquel Pedras. É uma noite de música e poesia que já ocorre há três anos para um público 80% feminino. A programação conta com shows musicais, quase sempre com a apresentação da cantora Lígia Santos, além de leitura de poemas, inclusive para quem quiser se arriscar no microfone.
Pratos com história
Com exceção do evento noturno às quintas, o restaurante funciona durante o dia, entre terça e sexta, com cardápio à la carte e refeições executivas para almoço. Juliana traz em sua identidade na cozinha uma relação com a história. Muitos pratos homenageiam mulheres marcantes.
Entre eles, o “Maria da Cruz” (R$ 84), nome de uma rebelde que viveu no século 18 na beira do Rio São Francisco e comandou um motim contra a coroa portuguesa. O prato une sabores do Norte de Minas: peito bovino meia cura, milho, mandioca com manteiga de garrafa, requeijão moreno, um “brochinho” de pequi e molho translúcido, que se refere às águas do Velho Chico.
Outro exemplo que a chef cita é o “Minha vida de menina” (R$ 130), que faz referência ao clássico livro de Helena Morley, sobre uma menina que viveu em Diamantina no século 19. A obra, uma espécie de diário, conta que, em momentos de sacrifício, como a sexta-feira santa, era comum comer bacalhau com angu, abóbora, feijão e couve, ingredientes que ela usa na receita.
“Gosto de cozinhar o que eu gosto de comer”, diz Juliana, que inaugurou o bar Puxadinho no quintal do Cozinha Santo Antônio, também com cozinha 100% feminina.
Segurança e acolhimento
Ter uma equipe exclusivamente feminina é uma premissa, como conta a chef Júlia Bonfante, que coordena a cozinha do Yanã desde 2023. Aberto em 2019, o espaço cultural tem a proposta de acolher e dar visibilidade a corpos e identidades diversas. Atualmente, é uma referência na promoção e valorização de artistas LGBTQIAPN+.
A escolha de atuar apenas com mulheres na cozinha, no bar, no salão, na manutenção, na limpeza e na produção não é por acaso: o Yanã recebe, em especial, mulheres lésbicas, bissexuais e trans. “Estar entre elas traz uma sensação de segurança e acolhimento. Criamos uma rede de apoio, e esse não é um papo vazio”, diz Júlia, que foi criada pela mãe na casa da avó, cozinheira e quitandeira em Ribeirão das Neves, na Grande BH.
Para a chef, trabalhar com homens não é a mesma coisa. Júlia conta que já ou por várias cozinhas hostis. “Muitas vezes, somos cerceadas, principalmente trabalhando à noite. Já estive em uma cozinha como a única mulher e, por ser uma mulher lésbica, ouvi muitas piadas pejorativas. Vivenciei situações constrangedoras, assim como já aconteceu com várias amigas. O assédio é comum. Inclusive, com diversas denúncias sobre o mesmo chef, sem mudar nada”, relata.
Lanches e almoços
O cardápio do Yanã reúne petiscos, hambúrgueres, sanduíches, pratos e drinques autorais. O carro-chefe é o sanduíche Caminhoneira (R$ 36), feito com hambúrguer, requeijão de raspa, bacon, banana-da-terra, alface e brioche. Entre as porções, croquete de costelinha marinada na cachaça (R$ 36), bolinho de feijão-fradinho com cogumelo (R$ 28) e dadinho de tapioca com geleia de pimenta (R$ 28).
A partir da segunda metade de abril, Júlia começa nova missão com a sócia Yasmin Cordeiro e equipe (a contratar) feminina. A Saudosa Cozinha, seu negócio paralelo, funcionará entre segunda e sexta para almoço no espaço Yanã – até lá, as refeições, como arroz caldoso com carne de a e moqueca de banana, continuam a ser servidas apenas aos domingos.
“Carrego as referências de todos os lugares por onde ei. Gosto de experimentar. Tem a pegada da comida mineira, mas explora ao máximo minha criatividade”, diz a chef, ao definir sua cozinha como saudosa e intuitiva.
Poder feminino
Para Bruna Rezende, à frente da cozinha do restaurante, bar e armazém A Porca Voadora, estar entre mulheres é acolhedor. “O poder feminino é algo muito presente.”
A chef diz que já atuou com homens na equipe e gosta de todas as configurações. Para ela, ser cuidadoso ou detalhista depende do indivíduo – não é uma questão de gênero. “Não sou xiita nesse aspecto. Essa turma feminina eu já conhecia, deu certo e continuamos juntas. Todas são de confiança. De qualquer jeito, é engrandecedor trabalhar ao lado de mulheres, e mulheres que eu iro.”
Na configuração atual, a chef-executiva, a subchef e as serviços gerais são mulheres. Apenas no salão que a equipe varia entre garçons e garçonetes.
O cardápio do bar tem inspiração belo-horizontina, unindo outras referências de Minas Gerais, do Brasil e do mundo. É uma comida contemporânea, descreve Bruna, que combina com uma cerveja gelada ou uma caipirinha.
O protagonista é o jiló recheado com joelho de porco empanado e frito (R$ 49), que já está no cardápio há duas temporadas. A feijoada individual (R$ 32) é a estrela da sexta-feira e, aos domingos, o destaque é a queridinha Porca Lambuzada. O prato com costelinha suína envolvida no molho da casa com tutu, macarronese, batata chips e arroz branco serve até duas pessoas (R$ 55 o individual e R$ 90 para dois).
Mãos delicadas
“Gosto de trabalhar com mulheres”, afirma Lorena Cozac, há 17 anos dona e chef da tradicional confeitaria Mole Antonelliana, que tem referências de mulheres fortes na família.
“Nós nos transformamos o tempo todo para dar conta das questões femininas da vida. Mulher é diferente e trabalhar com mulheres também é desafiador. Somos meio doidas”, brinca, ao falar sobre a montanha russa hormonal comum entre mulheres. “É uma questão química mesmo. A mulher é muito mais responsável em suas escolhas”, acrescenta.
Para ela, a mão feminina, sempre delicada, é um ponto especial, ainda que chefs homens também tenham uma força inerente. “Vai de cada um”, opina Lorena, que, na confeitaria, formou uma família. “É uma convivência interessante, muito boa, de anos. Uma relação profunda. São minhas amigas, parte de mim, da minha vida, da minha história na confeitaria.”
A equipe da cozinha é composta por duas confeiteiras e duas ajudantes que trabalham juntas há 15 anos. Dois homens são responsáveis pelo atendimento.
Uma das tortas mais desejadas da Mole Antonelliana é a clássica Saint Honoré, de massa folhada com creme de chocolate e bombinha de baunilha (R$ 36 a fatia). Outros destaques, elenca Lorena, são a bomba de baunilha (R$ 15), a bomba de pistache (R$ 18) e o Nido (R$ 23), casquinha de biscoito com creme de chocolate, manteiga e baunilha.
Formato preferido
A maranhense Regilene Coelho de Araújo, à frente do restaurante Maturi, compartilha da mesma opinião: “Mulher tem mais jeito, é mais delicada. Sabe contornar melhor a situação quando o cliente reclama. Mesmo quando não tem tanta técnica na cozinha, a noção como dona de casa, preparando o alimento, ajuda. Na questão da limpeza, também são mais organizadas. O toque feminino é diferente.”
Regilene já trabalhou com homens e conta que ter um grupo feminino foi algo que aconteceu aleatoriamente, mas se tornou um formato que a agrada. No comando, ela tem sempre a companhia de duas mulheres na cozinha, em esquema de rodízio (geralmente são freelancers) e, no atendimento, entre quatro a cinco mulheres, também variando a equipe a cada noite.
O restaurante é um resgate da gastronomia de sua terra natal, uma comida brasileira, nordestina, maranhense, sertaneja, mas sempre com apelo de Minas Gerais. A couve é uma presença no cardápio, por exemplo, e o baião de dois, receita formada por arroz e feijão-de-corda, tradicionalmente com carne de sol, aqui é feito com costelinha suína, couve e mandioca. “Há sempre algo para juntar com a mineiridade”, diz.
Entre os tira-gostos, a chef cita o bolinho de baião de dois com queijo minas (R$ 37), o lambari frito (R$ 36) e o pastelzinho de queijo com jiló (R$ 29).
As opções de pratos individuais incluem o Maria Isabel (R$ 38), arroz com carne de sol, abóbora, maxixe, cheiro verde e pimenta-de-cheiro, acompanhados de ovo frito, couve e banana-da-terra frita na manteiga, e o Franguinho Frito da Dona Raimundinha (R$ 32), sobrecoxa frita com feijão-de-corda, abóbora, maxixe, quiabo, farofinha da casa e arroz branco ou cuscuz de milho. Essa receita faz referência à mãe de Regilene, uma de suas inspirações na cozinha.
Núcleo de resistência
O machismo, o preconceito e a misoginia que rondam a cozinha têm história. Era 1890 quando o renomado chef francês Auguste Escoffier (1846-1935) discursou defendendo que o homem é “mais atento sobre os vários detalhes que são necessários para produzir um prato verdadeiramente perfeito e mais rigoroso em seu trabalho”. Para um dos expoentes da gastronomia sa moderna, as mulheres deveriam estar apartadas das cozinhas profissionais. Mesmo não sendo reconhecidas entres os figurões da alta gastronomia, mulheres de Lyon chamadas “mères” (mães, em francês) formaram um núcleo de resistência feminina no século 19. Sem emprego, as antigas funcionárias de famílias burguesas procuraram colocação em restaurantes ou inauguraram empreendimentos próprios, fazendo com que a gastronomia local se desenvolvesse. Pioneiras, acabaram nos primórdios configurando o que viria a ser a nouvelle cuisine, com um olhar para a produção regional.
Anote a receita: Costelinha suína envolvida em molho lambuzado (A Porca Voadora)
Ingredientes
- 2kg de costelinha suína;
- 100g de óleo;
- 200g de alho;
- 200g de cebola;
- 500g de pimentão;
- 500g de tomate;
- 200g de pimenta-de-cheiro;
- 50g de pimenta fermentada coreana (gojuchang);
- água o quanto baste;
- sal e pimenta-do-reino moída a gosto
Modo de fazer
- Tempere a costelinha com o sal e a pimenta-do-reino.
- Em uma a aberta e grande, despeje o óleo.
- Deixe esquentar bem e adicione a costelinha temperada, de modo que fique uma ao lado da outra.
- Deixe dourar bem de um lado.
- Assim que estiver neste ponto, vire, deixando dourar do outro lado.
- Assim que as costelinhas estiverem bem douradas em todas as partes, adicione a água para desgrudar o fundo.
- Quando secar, despeje mais água e repita este processo até que a carne esteja cozida (pinga e frita). Reserve.
- Aqueça uma frigideira com óleo e, quando ela estiver bem quente, coloque os tomates, os pimentões e a pimenta-de-cheiro (inteiros) para tostar, de modo que fiquem com a pele bem escura.
- Despeje em um recipiente e, assim que estiverem frios, retire o miolo dos pimentões.
- Processe todos os vegetais tostados, despeje em uma a, tempere com sal a gosto e finalize com a pimenta fermentada coreana.
- Acrescente as costelinhas cozidas e deixe que esse molho reduza (em fogo baixo) até que envolva completamente a carne, deixando, assim, tudo lambuzado.
Serviço
Cozinha Santo Antônio (@cozinha_santoantonio)
Rua São Domingos do Prata, 453 – Santo Antônio
(31) 98218-6427
Yanã (@espacoyana)
Avenida Francisco Sales, 127 – Floresta
(31) 99640-4916
A Porca Voadora (@aporcavoadorabar)
Rua do Ouro, 1709 – Serra
Mole Antonelliana (@moleantonelliana)
Avenida João Pinheiro, 156 – Centro
(31) 3224-1342
Maturi (@maturibh)
Rua Mármore, 169 – Santa Tereza