PRIMEIRA LEITURA

Leia trecho do novo romance de Mónica Ojeda

Lançamento da Autêntica Contemporânea, 'Xamãs elétricos na festa do sol' é o livro mais recente da escritora equatoriana, autora de 'Mandíbula' e 'Voladoras'

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Mónica Ojeda


Tradução de Silvia Massimini Felix

PARTE I
RUÍDO SOLAR
Ano 5550, calendário andino
NICOLE

O ouvido é o órgão do medo, Noa repetiu na noite em que subimos a cordilheira para ver os Xamãs Elétricos no páramo andino. Era a quinta edição do Festival Ruído Solar, um encontro de artistas sonoros que convidava poetas, músicos, dançarinos, musicômanos, pintores, performers e pessoas que diziam fazer de tudo, embora na verdade mal tentassem. Também era a primeira vez que fugíamos juntas, sem dinheiro, parando ônibus e pedindo carona a caminhões ao longo da estrada, sem outro plano a não ser desaparecer por sete noites e oito dias.


Sete noites e oito dias de noise experimental xamânico, de música under pós-andina, de retrofuturismo thrash ancestral, contou-nos alguém que tinha voltado transformado pela experiência, um filósofo new age de quem roubamos oitenta dólares, uma revista de astrologia e três comprimidos de ecstasy. Vocês vão ver, vão ver, ele insistiu de olhos bem abertos, don Nietzsche já escreveu: o ouvido é o órgão do medo.

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Não entendemos sua euforia, mas o escutamos porque as montanhas tinham o que desejávamos encontrar. Eu havia acabado de sair de casa, Noa tinha pintado o cabelo de azul. Eram tempos ardentes, cheios de vontade de nos expandirmos para ocupar um espaço maior no mundo.


Lembro-me do desejo. Lembro-me da sede.


Pensamos que poderíamos saciá-la na paisagem engendrada por um vulcão. De acordo com o site da organização, a caravana partia de Quito e a viagem até o acampamento durava quatro horas. Saímos de Guayaquil para a capital cantando como sapos cansados de seu charco, ansiosas para deixar o rio e abraçar os vales, trocar os manguezais pelas espeletias, as iguanas pelos curiquingues. Ignorávamos como as mudanças podiam ser difíceis, a chaga que permanece em nós quando abandonamos o que é nosso. Ninguém vai embora do lugar onde alguma vez depositou sua atenção: a pessoa se afasta do lugar de origem levando consigo um pedaço dele. Noa tinha a mim, e eu a ela, ou assim pensávamos, acompanhando-nos na fuga, preparando a mochila uma da outra e escolhendo a música apropriada para antes da partida: “Miedo”, de Rita Indiana, porque nem os grilos dormiam tranquilos na cidade-pântano; “Me voy”, das Ibeyi, já que íamos felizes pois o céu nos movimentava. A música celebra a vida, dissemos, mas também traz à tona o pior, embora ainda nem pudéssemos imaginar isso.


Partimos sem dar explicações a ninguém. Noa era distraída, então eu me encarreguei de orientar nossa chegada a Quito. Faltavam poucos dias para o Inti Raymi, e durante o caminho homens e mulheres com máscaras de Diabluma nos contaram histórias sobre o Ruído Solar. Ouvimos suas descrições dos rituais, da poesia tecnoxamânica, das alucinações coletivas, mas sobretudo dos desaparecidos que faziam crescer a lista de pessoas que não voltavam para casa, embora regressassem ao festival, sempre ao festival, como se convocados pela altura e pelo basalto. Como eles, nós duas fomos chamadas ao Ruído por uma voz geológica: a erupção do vulcão Sangay, no leste, que fez chover pássaros a cento e setenta e cinco quilômetros de distância. Despertamos com a cidade coberta de cinzas e aves mortas, e também com a consciência de que nada poderia evitar nossa subida ao páramo. Nada nos deteria porque essa erupção era a terra pronunciando nossos nomes, ditando-nos o futuro com a linguagem do subsolo.


Lembro-me das pegadas, do rosto sujo das crianças, do céu como uma pelagem de urso onde nada era visível e, mais abaixo, da rua cheia de sapos entre as penas.


Uma paisagem invoca outra, dizem. Uma catástrofe natural, por mais cruel que seja, traz consigo a ressurreição. Noa e eu conhecíamos este ciclo: o da beleza que surge das profundezas do desastre, rastejando, como se carregasse pedras no estômago. Sempre foi assim no ventre selvagem do território. Aqui todos escutam trovões de terra e bramidos de montanha, mantêm o equilíbrio em um chão que cavalga, ofega e morde ossos. A boca dos enxames, como o chamam, o local dos desmoronamentos.


Tínhamos dezoito anos e já havíamos ado mais de uma dezena de terremotos.


Quinze vulcões entraram em erupção antes de nos tornarmos amigas. Trinta permaneceram ativos.


Naquela época, minha mãe e a dela regavam o chão com água de camomila para fazê-lo dormir. Observavam os cães, os gatos e as iguanas, para ver se anunciavam algo, caso sentissem primeiro a pulsação da poeira, a raiva abrindo de um talho as raízes. As duas pertenciam ao grupo de autodefesa do bairro. Portavam pistolas e se reuniam com os vizinhos para organizar a segurança em casos de emergência. À noite, Noa e eu ouvíamos o barulho dos carros de patrulha, dos grilos e das balas. O país inteiro sofria com os sismos, mas Guayaquil era perigosa e as pessoas morriam diariamente por outros motivos. Crianças empunhavam armas enquanto nós duas descobríamos como era se sentir bem com alguém diferente de nós mesmas, alguém com quem conversar sobre o que era constrangedor, como a masturbação ou as dores íntimas. Ríamos, dançávamos ao som das bandas Bomba Estéreo e Dengue Dengue Dengue! e contávamos a verdade uma para a outra: que conhecíamos apenas a violência da natureza e dos homens, mas que desejávamos ansiosamente ter alegria e prazer. Uma vida menos regida pela morte.


A dor te confronta com o que você precisa. Noa havia sido abandonada pelo pai quando era pequena, e o meu era alcoólatra. Nossas mães mal conseguiam olhar para nós porque as lembrávamos do que não tinha corrido bem, embora o que nos unisse era muito mais do que a falta de amor ou a solidão: era a urgência de fugir para longe.


Sobre a autora e o livro

Nascida em Guayaquil, Equador, em 1988, Mónica Ojeda foi incluída na lista Bogotá39, que destaca os melhores jovens autores da América Latina, e foi finalista de prêmios como o Internacional de Conto Ribera del Duero. Seus livros vêm sendo traduzidos em diversos países: “Mandíbula” e “Voladoras” foram lançados no Brasil pela Autêntica Contemporânea. “Este romance é sobre a busca por refúgios quando nos sentimos desamparados. É sobre a música e a poesia como refúgios e como fontes inesgotáveis de uma imaginação futura. Uma imaginação que vem da tradição, do canto dos mortos, das pessoas que amamos e que não estão mais aqui e as quais revisitamos através da arte”, afirma Mónica Ojeda, em entrevista de divulgação. A edição brasileira optou pela inclusão, no final do livro, de um léxico quíchua e da cultura andina que aparece no romance.

reprodução

“Xamãs elétricos na festa do sol”
• De Mónica Ojeda
• Tradução de Silvia Masssimini Felix
• Autêntica Contemporânea
• 296 páginas
• R$ 79,80

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