MULHERES SEM LIMITES

Mulheres que saíram sozinhas para descobrir o mundo ganham livro

Portuguesa Sónia Serrano reúne histórias das viajantes que, do século 4 aos dias de hoje com a navegadora Tamara Klink, fizeram jornadas a lugares inóspitos

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Aos 28 anos, a brasileira Tamara Klink viaja pelo mundo para contar a história de como se tornou a primeira mulher a invernar sozinha no Ártico. Movida pelo desejo de encontrar a própria insignificância diante de uma natureza crua, a jovem também diz querer abrir caminhos e honrar as tantas outras que “desfizeram estereótipos mentirosos” e mantiveram viva a esperança da liberdade feminina.


Mais de mil e quinhentos anos separam Klink de Egrégia, a primeira mulher a partir em uma odisseia particular rumo ao desconhecido. No livro “Mulheres viajantes” (Tinta-da-China Brasil), a escritora portuguesa Sónia Serrano destrincha e reivindica a contribuição feminina nas fileiras de honra da história da humanidade.


As viajantes pesquisadas por Serrano pertencem a diversas classes sociais, econômicas e de pensamento, e nem todas eram defensoras da emancipação feminina, como Gertrude Bell, que fez duas viagens ao redor do mundo em 1897 e 1898, mas foi antissufragista. O que as une é o ímpeto de partir.


A maioria delas sentiu necessidade de dar testemunho das suas viagens, contudo, ao entrarem no domínio da escrita, que lhes era vedado, muitas adotaram gêneros literários próximos do confessional e tradicionalmente desvalorizados, como cartas ou diários, que permitiam uma narrativa aparentemente desestruturada. Inicialmente, não lhes era concedido o status de escritoras.


Os relatos escritos por homens tendiam a centrar-se na conquista e no domínio do desconhecido, enquanto as mulheres refletiam uma atitude mais contemplativa da transformação interior à medida que avançavam na jornada. Era comum que elas justificassem a sua ousadia de escrever publicamente com sentimento de inferioridade.


“As mulheres, quando publicavam seus diários, muitas vezes junto de um marido, irmão, ou amigo, pediam desculpas por terem ousado escrever. Elas diziam ‘sei que sou apenas uma mulher e não tenho pretensões com esta publicação’”, explicou Sónia Serrano.

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Os riscos


A exclusão da mulher da viagem é associada à “maldição de Ulisses”, onde Penélope, na mitologia grega, é consagrada pela sua capacidade de espera no lar, condecorada como a mulher mais fiel da história. Assim como em Tróia, esperava-se que a mulher ficasse, aguardasse, em contraste com o impulso masculino de partir.


Etimologicamente, viajar significa “perder a inocência”, perder o conforto, as referências e partir muitas vezes rumo ao desconhecido. Em inglês, “travel” deriva do francês travail, que por sua vez tem origem no termo latino tripalium, utilizado para designar um instrumento de tortura. Os perigos enfrentados pelas mulheres viajantes eram múltiplos, incluindo a segurança física e, de forma mais específica, o perigo de serem estupradas durante a jornada.


As vitorianas, devido ao rigor dos costumes da sua época, temiam particularmente a “perda da virtude”. Guias de viagem e manuais publicados em revistas acompanhavam as viajantes, como o “Hints to lady travellers at home and abroad”. Os textos ofereciam formas de evitar que fossem abusadas, incluindo listas de lugares que elas não poderiam frequentar e o tratamento com os “cavalheiros” no dia a dia.


O medo de ter o próprio corpo violado, no entanto, não ficou no ado. “Muitos me disseram que era perigoso, e concordo que é. Nevasca, frio, animais, etc. Mas quando comparo essa vida com a vida que vivi nas cidades, me sinto livre e segura. Aqui, caminho sem medo de ser atacada e durmo sem ter medo de ter meu corpo e minha casa invadidos”, narrou à escritora a brasileira Tamara Klink.

‘Mistura entre homem e mulher’

Se Tamara Klink permaneceu sem medo de ficar sozinha na imensidão branca do inverno Ártico, um século antes, outra jovem, a suíça Annemarie Schwarzenbach (1908-1942), primeira viajante pesquisada por Sónia Serrano, viajou para descobrir a si mesma. Apesar da riqueza familiar, Annemarie não se alinhava com os costumes tradicionais e conservadores da família, tendo uma relação complexa com a mãe, que não aceitava a sua homossexualidade.


Em 1933, iniciou a sua atividade como repórter de viagens e fotojornalista, publicando mais de trezentos artigos em importantes jornais suíços até à sua morte. O seu primeiro trabalho neste gênero resultou de uma viagem à Espanha com a fotógrafa berlinense Marianne Breslauer, que a considerava uma “estranha mistura entre homem e mulher” e comparava-a ao anjo Gabriel. Frequentemente fotografada, Annemarie revelava um certo narcisismo melancólico.


Viajou para Teerã, onde se casou por conveniência com Claude Clarac, obtendo a nacionalidade sa e um aporte diplomático. Apesar de manterem um afeto genuíno, Clarac também era gay. No Irã, viveu uma história de amor tumultuada e começou a escrever “Morte na Pérsia”, um dos seus livros mais marcantes.


Em 1939, partiu numa viagem de carro para o Afeganistão com a já célebre viajante e escritora suíça Ella Maillart. A viagem, sem guias, foi dificultada também pela recaída de Schwarzenbach no uso de opioides. Desta viagem resultaram várias reportagens e o relato mais existencial e subjetivo “Os quarenta pilares da memória”, nunca publicado em vida; Maillart documentou esta experiência em outro livro, “O caminho cruel”.


A mãe destruiu muitos diários e escritos pessoais de Annemarie após a morte da fotojornalista. No entanto, um espólio expressivo foi preservado e se encontra sob guarda da Biblioteca Nacional Suíça. A obra de Annemarie continua a ser publicada e ela deixou uma chave para a compreensão: “Mas só me entenderá quem tiver sido também vencido pelo sofrimento, pelo medo e pela aflição”.


O trabalho de Annemarie Schwarzenbach ganhou maior destaque a partir de 2010 após uma exposição retrospectiva, organizada por Sónia Serrano. Inspirada pela suíça, a portuguesa pesquisou por quatro anos a trajetória de outras mulheres viajantes. Ao Estado de Minas, Sónia Serrano afirmou que, entre tantos desafios, como o apagamento histórico, a parte mais desafiadora em escrever o livro foi parar a busca por essas mulheres.


Serrano é licenciada em direito e mestre em estudos literários, culturais e interartes. Dedicou-se ao estudo da literatura espanhola e hispano-americana e tem experiência em crítica literária e curadoria de exposições relacionadas com viagens e literatura. “Mulheres viajantes”, lançado em Portugal em 2017 e agora editado no Brasil com o acréscimo da parte relativa à Tamara Klink, é resultado da sua investigação e do seu interesse em resgatar e dar visibilidade à contribuição feminina na história das viagens. Leia, a seguir, a entrevista com a autora portuguesa.

Annemarie Schwarzenbach (1908-1942): Em 1939, ela foi de carro de Genebra até Cabul, no Afeganistão
Annemarie Schwarzenbach (1908-1942): Em 1939, ela foi de carro de Genebra até Cabul, no Afeganistão reprodução


Como estar à frente da organização de uma exposição sobre a obra fotográfica de Annemarie Schwarzenbach a inspirou a escrever o livro?
Eu e uma colega minha estávamos organizando essa exposição em 2010, essencialmente sobre o trabalho fotográfico dela. Eu tinha sido convidada para fazer a parte da produção literária e sabia que ela tinha sido uma grande viajante, aliás, era uma parte biográfica dela que é muito importante.


Annemarie fez uma viagem muito marcante. Em 1939, ela e outra viajante foram, de carro, de Genebra até Cabul, no Afeganistão. Elas atravessaram toda a Europa e parte da Ásia às vésperas do início da Segunda Guerra Mundial, tempos muito tumultuados. Eu achei esse fato fascinante e perguntei-me se seria normal as mulheres fazerem esse tipo de viagem. Confesso que não conhecia, apenas relatos de alguns homens, mas nunca de mulheres. Então decidi que, nessa exposição, haveria uma sala dedicada às mulheres viajantes.Acontece que, por questões de direitos autorais, não foi possível, em tempo hábil, conseguir essas fotografias. Então decidi transformar em livro a parte da exposição que não foi possível colocar nas paredes do museu.

Quanto tempo durou a pesquisa sobre as personagens históricas e o que foi mais desafiador?
Foram quatro anos de pesquisa. Eu gostava de corrigir o material, sabendo que algum dia tinha que parar. Mas quando digo “pronto, vai ser este o material que eu vou redigir para o livro” edepois aparecia sempre mais alguma mulher interessante, mais alguma viagem, mais algum livro. Até que a própria editora me disse: “Vamos publicar o livro, isso já não pode continuar”.


Um desafio também, naturalmente, foi encontrar essas mulheres. Eu espero que o meu livro tenha contribuído agora para que seja mais fácil encontrar a literatura produzida por mulheres em viagem, mas naquela altura, não havia tanto assim.

Como a sua vivência como pesquisadora acadêmica contribuiu para a escrita deste livro?
Uma das coisas mais interessantes que me disseramsobre o livro veio de um professor de literatura de viagens. Ele disse que era um livro que tanto podia ser lido por uma pessoa que não tivesse qualquer ligação com a academia como por estudantes que estivessem na universidade a estudar sobre literatura de viagem. Eu acho que a questão da academia é que tira muitos públicos. Uma produção acadêmica acaba por ser dirigida para um público muito específico, consumidor desse tipo de conteúdo, e deixa de fora muitas pessoas. Mas apesar de não ser propriamente uma investigação acadêmica, o livro tem o rigor da pesquisa. Não há nada que eu diga neste livro que não tenha uma fonte, que não seja referida à fonte, que eu não diga de onde é que tirei isto.

Com qual das viajantes você mais se identificou durante a construção do livro?
Annemarie Schwarzenbach. Eu adoro os livros dela, me identifico muito com a escrita dela, com a narrativa. Eu digo que são viagens interiores: é uma narrativa muito pessoal, focada nela própria também, um bocadinho atormentada. Eu acho que era também reflexo do tempo em que ela viveu, entre as duas grandes guerras do século 20 e, portanto, era a chamada geração perdida. O mundo em tumulto, em guerra, ela reflete muito isso e reflete através de viagem.


No livro, você traça um paralelo entre os territórios propriamente ditos e dos corpos femininos. Historicamente, como é a relação do homem com a mulher viajante?
O homem nunca quis que a mulher viajasse. O que acontecia é que o destino da mulher era ficar em casa, era ser dona de casa, casar-se, ter filhos, educar os filhos e muitas vezes também cuidar dos pais até eles morrerem. E isto, aliás, foi o que aconteceu com muitas dessas viajantes. Elas, muitas vezes, começam a viajar relativamente somente com 40 anos ou mais porque tinham estas obrigações todas para cumprir antes de poderem serem autônomas.


Para conseguirem decidir aquilo que queriam fazer das suas vidas, era muito complicado. E portanto, estas mulheres, de fato, foram muito atrevidas no sentido em que desafiaram as convenções. Infelizmente, elas sofrem censura muitas vezes quando viajam ou querem viajar sozinhas. Parece que tem que sempre viajar com a companhia de alguém ou sob a proteção de alguém. Ver uma mulher sozinha a viajar é uma coisa que ainda consegue ser em certos lugares algo estranho.


Há livros de homens que criticam muito as mulheres que viajam e dizem: ‘Mas como é que se atreve a fazer estas coisas? Ainda por cima escrever um livro’. O que acontecia muitas vezes é que nas narrativas de viagens feita por mulheres havia um preâmbulo em que a mulher pedia desculpa por escrever um livro de viagens. Por exemplo, Mary Kingsley, superdesafiadora e aventureira, diz: ‘Eu sou apenas uma mulher’.

Como essas mulheres registravam suas viagens, quais são as diferenças e os avanços na forma de documentar as viagens em relação ao ado?
Quando eu fiz o livro para o Brasil, adicionei alguns acréscimos de conteúdo, especificamente sobre viagens brasileiras. Eu percebi, até por estar nas redes sociais que, hoje em dia, não é só o livro que dá testemunho sobre as viagens. Temos outras formas de testemunho, os relatos que acontecem em redes sociais como o TikTok e Instagram. Eu, por exemplo, faço uma pequena biografia da Tamara Klink, uma jovem viajante brasileira. Havia uma profusão de fontes: não só livros, mas aquilo que ela publicava no Instagram, Facebook, TikTok. Então há, aqui, uma série de testemunhos sobre a viagem que são muito mais extensos, não é? Portanto, multiplicam-se. Às vezes, claro, podem coincidir e aquilo que se publica nas redes sociais acaba por ser a base para ser documental.

Tamara Klink, sozinha no Ártico:
Tamara Klink, sozinha no Ártico: Divulgação / Arquivo pessoal


“Mulheres tinham de lutar contra muitas resistências”

(Trecho do livro “Mulheres viajantes”, de Sónia Serrano)

“É o que normalmente acontece nos livros dedicados à literatura de viagens ou mesmo nos artigos de jornais que, com alguma frequência, dedicam dossiês ao assunto. É possível mas não é justo: uma importantíssima fatia da crónica da literatura de viagens é precisamente a das viagens feitas por pessoas a quem se vedava essa oportunidade. Para empreenderem a viagem desejada, as mulheres tinham de lutar contra muitas resistências. Não gostaria de as mitificar, mas apenas prestar-lhes a justa homenagem, através da memória das suas biografias, testemunhando o seu espírito de aventura, a sua coragem e o gosto que as levou a lugares aonde muitos hoje não se arriscaram.


A exclusão da mulher da viagem advém daquilo a que chamo “maldição de Ulisses”, esse mítico herói que, contra todas as expectativas, conseguiu manter a sua mulher à espera durante vinte anos. À espera e resistindo às tentações dos inúmeros pretendentes, como Ulisses pôde por si mesmo comprovar. Penélope é talvez o melhor exemplo de mulher fiel, tendo conquistado o direito a que lhe fossem erguidos vários monumentos, em honra da sua capacidade de espera e da sua resiliência, mas não é certamente o protótipo de mulher aventureira que resolve enfrentar os perigos e partir em busca do marido. Ela opta pela segurança do lar, por pouco familiar que este lhe seja sem a presença de Ulisses, em detrimento da intrepidez de partir rumo ao desconhecido. Penélope espera, e é esta espera que a consagra como mulher virtuosa. Confesso que não vejo grande virtude nesta delonga. A sua atitude influencia o entendimento sobre o papel da mulher ao longo da história no que diz respeito ao impulso de partir. A mulher não parte. A mulher fica. Aguarda. Ou não.”


“A verdadeira viagem é interior”

(Trecho do livro “Mulheres viajantes”, de Sónia Serrano, sobre Tamara Klink)

“Ela não gosta de dar razão aos que a acham corajosa por ter feito o que fez, dando provas sobretudo de uma grande persistência: reflexões de caráter mais filosófico, sobre o isolamento, o corpo, o que é ser humano, o que é ser mulher, revelando uma grande profundidade de pensamento e uma consciência empática e social de quem se preocupa e reflete sobre si, sobre os outros e sobre o seu lugar no mundo.


Num registo inédito em mulheres viajantes, Tamara falará de um assunto que durante séculos permaneceu tabu, o período, explicando que lhe surpreende quando, no fim das palestras, as moças quase em segredo lhe perguntam como faz nesses dias do mês, quando o verdadeiro desafio é para as mulheres que não estão sozinhas no mar:


“Quando voltar, quero eu perguntar à metade do planeta: como vocês fazem? Pra ir pra escola ou trabalho com dor, gerir barragens que extravasam, esconder manchas vermelhas inevitáveis da calça, da cadeira, do sofá. Como fazem pessoas com útero nas prisões, pagando a pena suplementar pelo crime de poder gestar? Como fazem nos países e religiões onde o sangue justifica exclusão, violência e olhar de nojo? Como fazem aquelas que não têm dinheiro pra comer, muito menos pra comprar coletor menstrual ou absorvente? Como fazem pessoas não mulheres que nasceram com útero e têm que carregá-lo? Como fizeram nossas avós pra nadar, correr, estudar e frequentar o mundo sendo adversárias do próprio corpo? Quanta energia e tempo foi desperdiçado pra manter o segredo menos secreto da história do planeta Terra?”


Que fique claro: estar sozinha no mar DIMINUI as dificuldades, não aumenta. Surge a questão da segurança e o incontornável tema de uma mulher a viajar só, não porque Tamara receie algo, mas porque os outros, sobretudo os homens, lhe incutem esse pensamento:


“Muitos me disseram que seria perigoso. E concordo que é. Nevasca, frio, animais selvagens e etc. Mas, quando comparo essa vida com a vida que vivi nas cidades, me sinto livre e segura. [...] Aqui, caminho sem medo de ser perseguida. Aqui, durmo sem medo de ter minha casa, meu corpo, invadidos. Danço sem medo de ser atacada.”


Mas a verdadeira viagem é interior, não estamos aqui perante uma viajante que visa superar desafios na esperança de ser a primeira, mesmo sendo-o, nem as suas expedições têm uma lógica de conquista. Creio que os objetivos de Tamara, por toda a narrativa que ela urde ao redor das suas vivências, se prendem com demonstrar o quão frágeis somos perante a imensidão da natureza, e com a necessidade inadiável de proteger o planeta e encontrar formas de vida alternativas. É também fundamental o seu testemunho como mulher, podendo servir de exemplo para outras, desafiando as convicções dos homens sobre o que pode ou não ser alcançado pelas mulheres. Como ela diz, o oceano não quer saber se quem comanda o barco é homem ou mulher.”

reprodução

“Mulheres viajantes”
• De Sónia Serrano
• Tinta-da-China Brasil
• 352 páginas
• R$ 119,90

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