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'Estamos ficando mais cegos', diz Eduardo Moreira

Um dos fundadores do Grupo Galpão diz que a adaptação de 'Ensaio sobre a cegueira' para o teatro faz ainda mais sentido do que na época do lançamento do livro

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“Penso que não cegamos, penso que estamos cegos”, escreveu José Saramago (1922-2010) em “Ensaio sobre a cegueira”. “Eu acho que estamos ficando mais cegos”, complementa Eduardo Moreira, 64 anos, ator e diretor artístico do Grupo Galpão. Ele interpreta o médico, um dos primeiros personagens a perder a visão na história criada pelo Nobel de Literatura e adaptada para o teatro pelo diretor Rodrigo Portella especialmente para encenação da companhia mineira de teatro.


Com duas horas e vinte minutos de duração e (ao menos) três cenas arrebatadoras, “(Um) ensaio sobre a cegueira” é outro ponto alto na trajetória do grupo que se tornou referência nas artes cênicas brasileiras nas últimas quatro décadas. Em determinado momento, espectadores são vendados e se juntam, em cena, aos homens, mulheres e crianças que saltaram das páginas para o palco. A interação, marcante tanto para quem participa quanto para quem assiste, culmina em um silêncio perturbador e capaz de rivalizar com o horror descrito por Saramago em seu romance. É quando nós, espectadores, nos tornamos cúmplices e somos confrontados pela provocação do professor Wagner Merije, especialista na obra do português, impressa no programa do espetáculo: “E se a cegueira não fosse a ausência de luz, mas a recusa em enxergar o outro?”


Em cartaz no Galpão Cine Horto até 1º de junho, “(Um) ensaio sobre a cegueira” segue para outras três capitais brasileiras até o fim do ano: Rio de Janeiro (agosto), São Paulo (outubro) e Porto Alegre (a definir). “Depois o espetáculo entra no nosso repertório e a gente espera poder levá-lo para Portugal: gostaria muito de ter o retorno dos portugueses”, revela Moreira, entrevistado no Podcast do Pensar na última terça-feira. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.


Suprema liberdade

“O desafio era enorme: ar da forma do romance para uma forma dramática. A literatura é o espaço da liberdade mais absoluta que existe, da suprema liberdade. Em outras formas artísticas, você fica atrelado à questão da imagem, de concretizar o que estava na imaginação. Comparado com cinema, as próprias artes plásticas, o teatro também tem um poder maior de liberdade. Para a nossa adaptação, fizemos muitos workshops para apresentar ao Rodrigo (Portella, que assina a direção e a dramaturgia do espetáculo). A gente estudou muito a obra do Saramago: não só “Ensaio sobre a cegueira”, mas também os outros dois livros da chamada ‘trilogia distópica’: “Ensaio sobre a lucidez” e “A caverna”, que nos trouxeram elementos muito importantes para pensar esse momento da obra do Saramago. Mas é um desafio muito grande: um salto no escuro. Ainda mais porque o romance é um épico, um castelo muito bem construído.”

"O teatro é o lugar do antídoto para o excesso de imagens, de informações supérfluas", acredita Eduardo Moreira, que interpreta o médico no espetáculo e foi entrevistado no podcast do Pensar
"O teatro é o lugar do antídoto para o excesso de imagens, de informações supérfluas", acredita Eduardo Moreira, que interpreta o médico no espetáculo e foi entrevistado no podcast do Pensar jair amaral/em/d.a press


Sem mimetismo

“Uma opção que a gente teve e decidiu que não faria foi um mimetismo da cegueira. Enquanto atuamos e interpretamos, estamos vendo o tempo inteiro. A gente tem o dispositivo das vendas usadas na parte do público que é convidada a participar e alguns outros momentos também. Mas, durante o espetáculo todo, a gente está vendo.”


Mais cegos

“Quando Saramago escreveu o romance, 30 anos atrás, não tínhamos perspectiva nenhuma de viver uma pandemia. Nem redes sociais, fake news, discursos de ódio, toda a separação que a sociedade vive com a polarização e esse momento político extremamente difícil com uma ascensão de um discurso de ódio muito forte dentro da manifestação política. A gente vive uma crise da democracia que vai chegando numa situação realmente de ime, com a vitória de autocratas. Acho que tudo isso está muito presente nesse enorme edifício construído por Saramago sob a égide da metáfora da cegueira. Me parece que, de 1995 para cá, diante de um terrível ime, estamos ficamos muito mais cegos.”


Possibilidade de salvação

“Acho que o Saramago coloca em ‘Ensaio sobre a cegueira’ é a mensagem que só a constituição de uma comunidade, de um trabalho comunitário, de uma ação que una as pessoas contra o individualismo, contra o consumismo, é a única possibilidade de salvação da humanidade. Isso está muito presente na obra do Saramago, em geral, e especialmente nesse tríptico que ‘Cegueira’, uma obra-prima, forma com ‘Ensaio sobre a lucidez’ e ‘A caverna’.”


Três lugares

“Cada apresentação, cada encontro com a obra e com o público a partir da obra é um desafio para nós. O Rodrigo (Portella) falava muito disso: tem os momentos em que você tem uma atuação dramática, que você aborda o personagem na primeira pessoa. Eu sou o médico, né? Eu estou vivendo ali o médico. Há outro momento narrativo no qual eu estou narrando aquilo que o médico está vivendo. E há um terceiro momento, que seria de um ator formulador, um ator que está formulando não somente a ação do médico, mas a situação do médico dentro da ação. A gente está o tempo inteiro circulando entre esses três lugares. Isso dá uma dinâmica de interpretação muito interessante, mas também exige um nível de concentração extremo.”


Mergulho sensorial

“Parte do público decide participar voluntariamente. Na própria compra do ingresso, já tem uma separação da experiência (no palco, com os olhos vendados). O retorno que tive do público que participou até agora é de um mergulho numa experiência absolutamente sensorial. Às vezes, muitas vezes, a pessoa perde um pouco o fio do discurso da palavra racional e entra numa experiência de cunho essencialmente sensorial. Quando você elimina o sentido da visão, evidentemente começa a valorizar os outros sentidos, como o tato e a escuta.”


Excesso de imagens

“Acredito que, através de ‘Ensaio sobre a cegueira’, é possível oferecer uma espécie de um antídoto para essa era pós-moderna: a gente está absolutamente inflacionado pela imagem. Tudo é imagem, imagem, imagem... Não paramos de ver imagens. É a tela do celular nos escravizando permanentemente. As pessoas não conseguem se concentrar num texto de duas páginas, são incapazes de ler se não for na linguagem do TikTok: é tudo instantâneo. Estamos oferecendo um espetáculo de duas horas e vinte minutos, praticamente sem intervalos. O único intervalo é dentro de cena e dura exatamente dois minutos. Fazemos de uma maneira muito precisa para que ele vire, de fato, uma cena. O teatro é um pouco do lugar do antídoto para o excesso de imagens, de informações supérfluas.”


O sentido da rua

“Acho que a gente precisa reconquistar o espaço público. Essa é uma questão política fundamental para todos nós. O final do espetáculo reflete essa questão: ir para a rua dá um sentido, acho que traz um pouco de esperança. Mas, ao mesmo tempo, tudo está indefinido. O futuro daqueles personagens está em aberto.”


O sentido da rua


“Acho que a gente precisa reconquistar o espaço público. Essa é uma questão política fundamental para todos nós. O final do espetáculo reflete essa questão: ir para a rua dá um sentido, acho que traz um pouco de esperança. Mas, ao mesmo tempo, tudo está indefinido. O futuro daqueles personagens está em aberto.” 


Pacto social

“Em ‘Ensaio sobre a cegueira’, José Saramago propõe mais que uma alegoria apocalíptica – ele lança um apelo urgente por um novo pacto social. O mundo narrado por ele colapsa não apenas pela perda da visão, mas porque cada um se torna prisioneiro de si. O individualismo, tratado como normalidade, revela sua face cruel: medo, egoísmo e brutalidade. Mas há uma fresta. E é pela ação coletiva, pela solidariedade que resiste mesmo no escuro, que se insinua uma saída. O Grupo Galpão, com sua potência cênica, amplia esse chamado.”


Wagner Merije, Doutor em Literatura de Língua Portuguesa pela Universidade de Coimbra e especialista na obra de José Saramago


MERGULHO SENSORIAL

“Na própria compra tem uma separação do ingresso da experiência (no palco, com os olhos vendados). O retorno que tive do público que participou até agora é de um mergulho numa experiência absolutamente sensorial”

Eduardo Moreira, ator do Galpão,
que interpreta o médico na montagem

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