
Carême: o revolucionário da confeitaria (parte 1)
A verdade é que confeiteiros sofrem preconceito até hoje, como se fossem menos capazes de encarar uma cozinha
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“Preciso de uma sobremesa que surpreenda os mais exigentes dos comilões. E, para esse almoço, você será o melhor chef confeiteiro da França.”
O pedido um tanto quanto desafiador era para um jovem já conhecido pelo seu trabalho criativo e audacioso com açúcar. E ele não decepcionou. Antonin Carême levou para o centro da mesa de um suntuoso palácio uma enorme pirâmide. Colocou fogo na estrutura e abaixo dela se revelaram variadas petit desserts. Sob olhares surpresos e irados, ele mostrou que seria um personagem marcante da confeitaria. Acredite, tudo isso se ou nos anos 1800.
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Já tinha ouvido falar em Carême, mas só mergulhei a fundo na sua história quando soube da série da Apple TV “Carême – O rebelde da culinária”, que reproduz a cena descrita acima no primeiro capítulo – são oito no total; o último estreia na próxima quarta-feira (11/6). Logo entendi o quanto ele havia sido importante para a pâtisserie e não demorei para devorar o livro “Carême: Cozinheiro dos reis”, do ator, escritor e chef britânico Ian Kelly, que inspirou a produção do streaming e colaborou com o roteiro. Ele chegou a interpretar seu biografado em uma peça de teatro.
Carême nasceu em Paris em 1783 e recebeu o nome de Marie Antoine, em homenagem à rainha Maria Antonieta. Mas ficou conhecido mesmo como Antonin. Abandonado pelos pais, acabou acolhido por um cozinheiro e foi trabalhar como ajudante de cozinha na taberna deste homem.
Naqueles tempos, as estrelas da cozinha sa eram os confeiteiros. E isso levou Carême a iniciar, em 1798, seu aprendizado com o pâtissier Sylvain Bailly. Na série, Carême é apresentado como filho de Bailly, uma escolha dos roteiristas (imagino eu) para deixar a história mais dramática. Romances, tramoias e traições também extrapolam a biografia, que se concentra em sua vida na cozinha.
Carême era um cozinheiro completo, preparava banquetes grandiosos e luxuosos, das sopas aos entremets, mas sempre as sobremesas eram a parte mais importante. É provável que ele tenha sofrido preconceito, como sugere a série, pela sua origem. Quando vai trabalhar na cozinha do nobre Talleyrand, é colocado diante de uma pilha de cebolas. Percebendo a pouca agilidade do “novato”, o chef debocha e alguém grita ao longe: “É um confeiteiro. É normal!”. Todos riem ao fundo.
A verdade é que confeiteiros sofrem preconceito até hoje, como se fossem menos capazes de encarar uma cozinha. Mesmo assim, muitos fazem questão (ou acabam sendo obrigados) a ganhar experiência com pratos salgados, enquanto chefs não se constrangem em dizer que não sabem ou não gostam de fazer sobremesa.
Carême tinha um olhar muito especial para a apresentação dos pratos. “Considero a arquitetura a primeira entre as artes. E o principal ramo da arquitetura é a confeitaria”, dizia. Ele era tão apaixonado por arquitetura clássica que ava seu tempo livre na Bibliothèque Nationale estudando e desenhando.
Dá para entender porque as pieces montées ou extraordinaires viraram sua especialidade. Feitas de ingredientes como suspiro, creme de confeiteiro, marzipã, fios de açúcar e glacê, as peças embelezavam as mesas da alta sociedade napoleônica, no momento ápice do banquete, e eram o grande cartão de visitas do confeiteiro. Para Carême, era uma forma de dar vida aos seus desenhos, reproduzindo-os na pâtisserie. Na série, aparece a escultura de uma mulher seminua sendo devorada pelos convidados de um banquete.
De toda essa arte, ficou de herança o croquembouche, que ultraou fronteiras e resistiu aos séculos, sendo visto até hoje. Consiste em uma torre de profiteroles (massa choux com recheio de creme de confeiteiro) enfeitada com fios de caramelo.
Assim como uma série de TV, esta coluna será dividida em episódios – dois, precisamente – para fazer jus ao legado de Carême para a confeitaria. A história, portanto, continua no próximo texto, que será publicado em 7 de julho.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.