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Muitos não se dão conta, mas a monarquia é um dos elementos que de fato diferenciam o Canadá de seus vizinhos americanos e além
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A ânsia por ser diferente não torna nada mais belo do que a força da tradição. A harmonia visível de um sistema político estável — que dispensa estereótipos e propaganda para ser reconhecido — é o principal fermento das atitudes de líderes exemplares. Isso se torna ainda mais evidente em períodos de crise, de devastação de valores e de escassez de serenidade para irar pessoas sensatas. Consensos e conciliações tornam-se inatingíveis quando a reflexão é característica de poucos, e as ideias exageradas capturam mais atenção.
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Um dos mais elevados políticos, diplomatas e intelectuais brasileiros, o pernambucano Joaquim Nabuco — aristocrata da mais alta hierarquia nacional durante a transição do Império para a República —, tornou-se homem público por uma tradição familiar que sabia o que expressava uma civilização vitoriosa. Em nome da grandeza da nação dedicou-se, assim, por toda a vida a destruir a obra da escravidão no Brasil. Em "Minha Formação", um dos mais belos livros já escritos por um brasileiro, Nabuco — que viveu no Reino Unido e nos Estados Unidos — não hesita em afirmar: “um governo pessoal é possível na Casa Branca; é impossível no Castelo de Windsor.” A superstição do costume ite até o respeito pelo que é inútil, desde que carregue o selo de uma época; e, se houver necessidade de reforma, esta não deve romper com o espírito original das instituições.
As diferenças entre os dois países são descritas com notável precisão, como na observação de que “não há na Inglaterra um trecho do território em que os cidadãos só tenham confiança na justiça que fazem com as próprias mãos.” Nabuco ainda afirma: “Os EUA são um país livre por excelência, que se acostumou a ser independente do governo... Assim, o cidadão nos EUA vale menos do que na Inglaterra, onde a proteção governamental está sempre presente.” Em uma síntese das impressões que acumulou ao longo da vida, observa que o inglês faz tudo sólido, o francês, elegante, e o americano, nítido. Mas, adverte, com tom de profeta: “a questão é saber se a coluna de autoridade, presente na Inglaterra, e que parece hoje tão leve nos EUA, não virá um dia a ser a mais pesada de todas.”
Pois bem, eis que um presidente estadunidense, em uma busca peculiar por popularidade e influência, decide ofuscar as tradicionais luzes de seu país e impor à nação suas ideias, partindo para cima do Canadá — esquecendo-se de que o vizinho ao norte é um país da Commonwealth, organizada em torno da tradição britânica. Assim, com força e tradição, a velha monarquia se reafirma aplicando tapas de luva na jovem República da América do Norte.
Na terça-feira ada, em um gesto simbólico e inesperado, embora protocolar, o rei Charles III presidiu a abertura da 45ª Legislatura do Parlamento do Canadá. Sentado no trono em uma câmara temporária do Senado — instalada numa antiga estação de trem —, o monarca reinante conduziu, pela primeira vez em 50 anos, a cerimônia em Ottawa.
O discurso do rei foi especialmente aguardado diante das atuais tensões no país. Para além dos debates sobre a reconciliação com os povos indígenas, a crise climática e os desafios à unidade nacional — temas recorrentes na política canadense nas últimas décadas — desta vez pairava a sombra das insólitas investidas da superpotência vizinha.
Todos estavam atentos às mensagens que o soberano iria enfatizar, reveladoras tanto do tom do novo governo quanto do papel da monarquia na contemporaneidade canadense. Afinal, o surpreendente convite ao rei é atribuído ao desconforto gerado por diversas declarações do atual governo dos EUA, que vêm tentando rebaixar o status do Canadá como nação soberana.
O Canadá parecia querer afirmar: “Não me pareço tanto assim com você, EUA. Nossas raízes históricas se separaram há muito tempo — marcando diferenças substantivas entre nossas sociedades. Se for para aceitar algum tipo de subordinação, que seja àquela historicamente destinada ao rei que vive no Reino Unido e a quem nem precisamos mais dar tanta bola.”
Afinal, muitos não se dão conta, mas a monarquia é um dos elementos que de fato diferenciam o Canadá de seus vizinhos americanos e além. Enquanto o chefe de governo canadense é o primeiro-ministro, que exerce poderes mais amplos do que em outros sistemas parlamentaristas, o chefe de Estado continua sendo o monarca da Commonwealth. Hoje, a Commonwealth reúne 15 reinos, todos soberanos e independentes entre si, iguais em status e unidos por lealdade comum à mesma Coroa.
O rei reina, mas não governa, decide, a seu modo, cada nação. Trata-se de um arranjo institucional único no mundo. Charles — em discurso feito, em parte, em francês — enfatizou o respeito aos povos indígenas locais, maior valorização de aspectos multiculturais e da gestão multilateral do mundo.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.