Cosac volta com livros sobre a história do Brasil
Editora de Charles Cosac lança 5 títulos pela série "Crioula", dedicada a "trabalhos inovadores", entre eles títulos sobre a devoção negra no Brasil ColoniaL
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Siga noA palavra crioula vem do verbo latino “creare” – criar, em português. “Crioula” é também o nome da série de cinco livros lançados pela editora Cosac, que volta ao mercado brasileiro com uma coleção de extrema qualidade editorial e gráfica, trazendo textos resultantes de pesquisa em fontes documentais entre os séculos 16 e 19, ilustrações originais e mapas. “Trata-se de uma enciclopédia”, informa odiretor editorial, Álvaro Machado, adiantando que a série não tem um epílogo programado, pois novos lançamentos estão a caminho, sempre jogandoluz sobre tema esquecidos ou ignorados.
Ao abrir os volumes sobre a história do Brasil, cada um com a capa de uma cor e disponível apenas em livro físico, a impressão bem particular é que não são páginas apenas para leitura, mas também para serem “ouvidas”, como se alguém tivesse nos contando histórias e conduzindo a viagens ao longo do tempo. “O cuidado com a apresentação das imagens, característica das edições da Cosac, foi acrescido de textos explicativos, de legendas, que inserem o leitor na trama que se quer apresentar. Então, é quase, sim, ‘ouvir’, histórias, através do sentido da visão”, diz a professoraSheila de Castro Faria, da Universidade Federal Fluminense (UFF), organizadora da série Crioula.
Sobre o significado do título da coleção, que pode soar de forma pejorativa, há, na verdade, um sentido mais amplo. Segundo os dicionários, afirma Sheila, o termo traz como acepções primárias aquilo ou aquele “que não vem de fora”, ou “que é nativo do local de quem fala ou escreve”. “Ao enfatizar a origem, o lugar de criação, ‘crioula’ expressa com precisão o que buscamos: reunir o conhecimento produzido por brasileiros e brasileiras sobre nossa história. Não se deve esquecer que esse mesmo termo foi usado para se referir aos filhos de espanhóis nascidos na América, os ‘criollos’, durante o período colonial, sem relação alguma com escravidão.”
Assim, a série tem como objetivo dar visibilidade a trabalhos inovadores sobre a história do Brasil, com autores e autoras oriundos das mais variadas instituições acadêmicas do país. “E contemplatanto pesquisadores iniciantes como consagrados que as editoras universitárias não conseguem absorver, e combinando aestética da Cosac e o rigor acadêmico”.
TEMAS
O projeto editorial reúne temas variados e novos formatos, tendo como moldura o período escravista do Brasil, embora nem todos estejam ligados diretamente à escravidãonão são os únicos.“Sinhás pretas, damas mercadoras”, aborda de que forma mulheres negras africanas, trazidas ao Brasil como escravizadas, conseguiram obter sua liberdade e prosperar em circunstâncias totalmente desfavoráveis.
Já em “Segunda visitação da Inquisição à Bahia (1618-1620), de Angelo Adriano de Faria Assis, da Universidade Federal deViçosa, e Ronaldo Vainfas (UFF e Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro-Uerj), o manuscrito do “Livro das denunciações da Segunda Visitação do Santo Ofício ao Brasil”, com 239 denúncias, é transcrito integralmente e analisado.Com prefácio do antropólogo, historiador e pesquisador Luiz Mott, estão reunidos testemunhos e delações na Bahia colonial. Indígenas, africanos, portugueses, mestiços e sobretudo os cristãos-novos estiveram sob o jugo direto da Inquisição por pelo menos três anos, acusados de praticar judaísmo em segredo, bigamia, homossexualidade, blasfêmia e feitiçarias.
“Devoção negra”, de AndersonJosé Machado de Oliveira, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), analisa o culto a santas e santos pretos, especialmente a Santa Efigênia e a Santo Elesbão, usados pela Igreja Católica, segundo eles, como forma de dominação religiosa para viabilizar a cristianização. “Viajantes de saias”, de Ludmila de Souza Maia, da Universidade Estadual de Campinha-Unicamp e Uerj) apresenta as experiências da brasileira Nísia Floresta (1810-1885) e da sa Adèle Toussaint-Samson (1826-1911) como escritoras e viajantes.
“Caçadoresde baleias”, de Wellington Castellucci Junior, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, fala da expansão baleeira norte-americana nos mares do Atlântico Sul entre os anos 1740 e 1850.
Para sua obra “Sinhás pretas...”, a professora Sheilafez cuidadosa pesquisa para “iluminar as trajetórias, nãomajoritárias entre escravizadas e escravizados, trazendo dimensõesdas experiências de liberdade no cativeiro em cidades do Sudeste brasileironos séculos 18 e 19. Especialista em história do Brasil colonial e imperial, com enfoque na história da família, da escravidão e da Alforria, ela diz aprendeu muito nesse trabalho: “Eu e todas as brasileiras somos o resultado cultural dessas mulheres, todas, não só das que ficaram ricas”.
MAIS LANÇAMENTOS
Os livros da série não se esgotam nesses cinco títulos. Estão em produção “Nas fronteiras do Além. A Secularização da Morte no Rio de Janeiro (séculosXVIII e XIX)”, de Cláudia Rodrigues, uma reedição, sobre as transformações dos ritos fúnebres no período estipulado. E ainda “A doença e a cura. Saberes médicos e práticas costumeiras na Corte imperial”, de Márcio de Souza Soares, texto inédito, originalmente uma dissertação de mestrado, que analisa os embates da medicina com a religião e as práticas costumeiras populares. Ambos serão lançados ainda este ano.
“Temos aprovados mais de 15 títulos, mas a periodicidade da publicação ainda está em estudo. Acredito que será uma série longeva e fundamental para os que se interessam por conhecer o ado através de pesquisas sérias e confiáveis, porque de acordo com o rigor acadêmico e científico e com roupagem ível ao público leigo”, diz a organizadora da série da Cosac, que retorna em alto estilo ao mercado editorial.
Conforme divulga editora,a Cosac, consolida neste ano a proposta de construir um catálogo renovado, mantendo sua marca registrada na originalidade, no cuidado editorial e na excelência gráfica. As áreas depublicação incluem literatura, artes, história, cinema, teatro, fotografia, ensaio e crítica, entre outras categorias.
A Cosac Naify (1996-2022) fez história no mercado editorial brasileiro com o lançamento de mais de 1,6 mil títulos, levando aos leitores edições caracterizadas pela excelência e originalidade, em forma e conteúdo. A editora, agora rebatizada Cosac,retomou suas atividades empresariais em 2024, destacando “o respeito pelo seu ado e o olhar para o futuro”.
Trechos dos livros
“ ‘Alforria’ vem do árabe ‘Al-hurruâ’ e significa a liberdade do cativeiro concedida ao escravo. Assim com a escravidão, a alforria foi uma prática incorporada à legislação portuguesa pelo direito costumeiro: se o escravo era propriedade de alguém, era possível alforriá-lo. Dessa maneira, as Ordenações Filipinas, que regulam a posse de escravos do século XVII ao XIX, não descrevem os meios pelos quais se concedia a alforria, mas sim as possibilidades de se retirá-la, com muitas de suas determinações inspiradas no direito romano” (“Sinhás pretas, damas mercadoras”, de Sheila de Castro Faria)
“Por um lado, a Segunda Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil, restrita à Bahia entre 1618 e 1620, deu continuidade à estratégia da Inquisição portuguesa de abarcar as possessões atlânticas de Portugal como território de vigilância, atenta aos erros de fé que vicejavam nessas partes – uma iniciativa da dinastia filipina, que engoliu Portugal e eu império marítimo, como vimos, desde o final do século XVI (1580). Nada de novo, exceto a ampliação da territorialidade inquisitorial para o mundo atlântico então hispano-português” (“Segunda Visitação da Inquisição à Bahia (1618-1620)”, de Angelo Adriano Faria de Assis e Ronaldo Vainfas)
“A mesma África idealizada, convertida e fiel a Cristo, era uma terra de nobres famílias aparentadas com o próprio filho de Deus. Era essa a verdadeira nobreza, e não aquela nobreza tribal de que muitos africanos ainda se lembravam do mundo colonial. Era o exemplo dos expoentes daquelas famílias que os devotos de Elesbão e Efigênia deveriam seguir. Em certo sentido, o que se pretendia era que essa ‘tradição inventada’ substituísse em grande parte as memórias do tráfico e da África como local de comércio de cativos” (“Devoção negra”, de Anderson José Machado de Oliveira)
“Nísia Floresta e Adèle Toussaint escreveram sobre o Rio de Janeiro na década de 1850, momento que se consagrou na memória política do século XIX como uma época de apogeu do Segundo Reinado brasileiro. O fim do turbulento período regencial, do perigo da intervenção inglesa e das disputas políticas acirradas da década de 1840 fez os anos 1850 e 1860 serem lembrados como décadas de paz e prosperidade, devido, entre outras coisas, ao fim do tráfico de escravos” (“Viajantes de saias”, de Ludmila de Souza Maia)
“Com a ‘maré baixa’, as baleias ficavam com o lombo exposto e começava o trabalho de destrinchar e retirar sua ‘capa de gordura’. Pedaços grandes do toucinho eram extraídos, enquanto outros escravizados e libertos os levavam para as casas de ‘cozinhar baleias’. Lá, a gordura era processada em tachos de cobre, aquecidos por fornos a lenha, no interior da estrutura conhecida por ‘armação de baleias’”(“Caçadores de baleias”, de Wellington Castellucci Júnior)
“Ao enfatizar a origem, o lugar de criação, a palavra ‘crioula’ expressa com precisão o que buscamos: reunir o conhecimento produzido por brasileiros e brasileiras sobre nossa história”
Sheila de Castro Faria, organizadora da série de livros lançados pela Cosac
Entrevista/ Sheila de Castro Faria
(professora e organizadora da série “Crioula”)
“É um projeto ousado com temas variados”
Como foi concebida a série “Crioula”?
Não posso deixar, aqui, de registrar o autor da ideia da série, Charles Cosac, um apaixonado por publicar livros. Há três anos, estávamos trabalhando em outro projeto, o livro“Preciosa Florinda”, que tem como objeto de estudo uma mulher preta representada em fotos de fins do XIX com muitas joias e traje de beca, organizado por Eduardo Bueno e composto por textos de vários autores, editado pela Cosac. Eu cheguei por último, através da insistência de Charles, que havia lido o “Sinhás pretas, damas Mercadoras”, tese que apresentei para o concurso de professora titular em História do Brasil da Universidade Federal Fluminense. Essa tese corria mundo na versão PDF, e Charles havia gostado. Durante o tempo em que trabalhamos no“Florinda”, dizia com frequência que a queria publicar. E assim o fez, só que foi além:decidiu investir em um conjunto de pesquisas que tratasse da história do Brasil, da colônia ao século XIX, escrito por brasileiros e brasileiras a respeito das peculiaridades de nossa experiência histórica.
Fale-nos, por favor, sobre os temas abordados na série.
É um projeto ousado, porque abarca temas variados e novos formatos. A moldura dasérie é o período escravista do Brasil, mas os temas diretamente ligados à escravidãonão são os únicos. Nesses cinco primeiros livros, “Sinhás pretas...” trata diretamente daescravidão e “Devoção negra...” aborda santos pretos, caso de Santo Elesbão e SantaEfigênia, e seus cultos no Brasil escravista. O livro “Viajantes de saias”, por sua vez, nãoé centrado na escravidão, pois analisa o percurso de vida de duas mulheres de letras queviveram entre Brasil e França, viajaram muito e publicaram textos registrando o quepensavam sobre a condição de mulheres escritoras na relação com a família, os filhos, aliteratura e, é claro, a sociedade escravista que vivenciaram. “Caçadores de baleias”obviamente analisa o uso de escravizados nos navios baleeiros, mas seu objeto é o meiomarítimo em sua relação com os diversos pontos do mundo a partir da Nova Inglaterra,em especial com o Atlântico Sul, na captura e comercialização dos derivados de baleias.
Pode nos explicar o título escolhido?
O termo “crioula” foi utilizado, no período escravista, para se referir à criança nascida no Brasil, diferenciando-se do termo “preto/a” que remete a escravizado/a nascido/a na África. O nome da série, entretanto, tem um sentido bem mais amplo, porque etimologicamente “crioula”, ainda que sujeita a discussões, remonta ao verbo latino “creare” (criar). É por isso que, segundo os dicionários, o termo traz como acepções primárias aquilo ou aquele “que não vem de fora”, ou “que é nativo do local de quem fala ou escreve”. Ao enfatizar a origem, o lugar de criação, “crioula” expressa com precisão o que buscamos: reunir o conhecimento produzido por brasileiros e brasileiras sobre nossa história. Não se deve esquecer que esse mesmo termo foi usado para se referir aos filhos de espanhóis nascidos na América, os “criollos”, durante o período colonial, sem relação alguma com escravidão. Seguindo essa acepção, a série tem como objetivo dar visibilidade a trabalhos inovadores sobre a história do Brasil, com autores e autoras oriundos das mais variadas instituições acadêmicas do país.
Na coleção, há trabalhos sobre inquisição, religiosidade, mulheres viajantes, escravizadas que conseguiram empreender, em condições adversas, e caçadores de baleias. Como foram escolhidos os temas?
Aseleçãopara a série “Crioula” não estabelece critério temático, pois pretende ser um conjunto de trabalhos com os mais diferentes enfoques. Charles Cosac a classifica de uma “enciclopédia” da História do Brasil. A ideia inicial era ocupar o espaço deixado pelas editoras universitárias que não dão conta de publicar a excelente produção acadêmica do Brasil em História. Mas, fomos além. Nós nos preocupamos em selecionar temas inovadores, sejam livros clássicos (no caso de reedições), sejam pesquisas recém-concluídas. Alguns princípios são fundamentais: os trabalhos precisam apresentar uma pesquisa rigorosa e o uso de documentação pertinente, quer de maneira qualitativa ou quantitativa, sem restrição de nível, porque o importante é a qualidade. Pode ser dissertação de mestrado, tese de doutorado, de titular ou de livre docente,e até mesmo de trabalho de pesquisadoras e pesquisadores já renomados. Um exemplo desse último caso é o livro“Segunda Visitação da Inquisição à Bahia (1618-1620)”, porque ao solicitar indicações de trabalhos de discentes que poderiam entrar na série, o professor Ronaldo Vainfas relatou a descoberta do conjunto de denunciações ao Santo Ofício que repousava por quatrocentos anos no Arquivo da Torre do Tombo de Lisboa sem que os especialistas tivessem conhecimento. A proposta para publicação foi prontamente aceita pela Cosac e agora o livro, emcoautoriacom Angelo Adriano Faria de Assis, está publicado.
A senhora escreveu o livro “Sinhás pretas, damas mercadoras”. O que aprendeu com aquelas mulheres?
Eu e todas as brasileiras somos o resultado cultural dessas mulheres, todas, não só das que ficaram ricas. “Sinhás pretas...” foi um título criado por mim, não é uma expressão de época. Analisar essas mulheres, entretanto, acabou por lançar luz a alguns comportamentos compartilhados até pelas que não enriqueceram, como, por exemplo, a chefia de suas casas e a forma como partilhavam seus bens através de seus testamentos: destinavam a maior parte deles a suas ex-escravizadas e às filhas delas nascidas em seu domicílio, às crioulinhas, como diziam. Eram domicílios femininos, como ocorria em grande parte das sociedades africanas, nas quais a permitida poligamia estipulava domicílios diferentes para as esposas, que nada herdavam dos maridos ou filhos e que avam seus bens para suas filhas. Era um sistema de herança dividido por gênero. Isso me fez lançar a hipótese de que o costume do Brasil, demonstrado por demógrafos historiadores desde pelo menos o século XVIII, de existir uma porcentagem expressiva de domicílios liderados por mulheres nas zonas urbanas tinha como origem as culturas africanas.
É possível se fazer comparativo entre ontem e hoje?
Hoje, pelo último Censo do Brasil,quase metade dos lares são chefiados por mulheres; em alguns estados, am de 50%. Isso merecia uma explicação que não fosse economicista, pois muitos relacionam diretamente esse fenômeno à pobreza. Sim, são domicílios no mais das vezes pobres, como eram também a maioria dos existentes nos séculos anteriores, principalmente quando se trata da população negra. Mas têm uma origem profunda nessa ancestralidade africana. Creio que é esse aprendizado: pensar as origens culturais de certos costumes da sociedade brasileira atual e, através dessas mulheres, demonstrar que a história da escravidão não se resume a brancos proprietários versus negros escravizados, que entre esses polos, obviamente considerados como masculinos, existe uma gama gigantesca de arranjos e de relações que precisa ser considerada. A sociedade, tanto de antes quanto de hoje, é muito mais complexa do que essa polarização.
Durante esse trabalho, quais foram as principais descobertas?
Embora aposentada, sou professora universitária e atuante na pós-graduação stricto sensu, tanto como orientadora quanto como leitora, e por isso, acostumada a ler “inéditos”, porque participei, e ainda participo, de bancas de conclusão de mestrado e doutorado. Assim, não houve propriamente descoberta, mas constatação de que a excelente produção historiográfica brasileira é tributária do ensino público. Todos os livros dessa primeira leva são oriundos de pesquisas realizadas em universidades públicas brasileiras, sejam federais ou estaduais. A série está aberta a trabalhos de instituições particulares, sem dúvida, mas é evidente que está no universo da educação pública os melhores resultados em qualquer área do saber.
A coleção mostra que temos ainda muito a conhecer sobre nossa história? A quem se dirige essa coleção?
Creio que já existe um universo historiográfico extenso bastante desconhecido do público em geral, mesmo de um público erudito, por conta do formato dessa produção acadêmica, que não seduz o leitor leigo. É essa ponte que pretendemos construir, através de livros textualmente íveis e plasticamente impecáveis.