Por Ana Flávia Sales
A recente polêmica envolvendo a intimação do ex-presidente Jair Bolsonaro, enquanto internado em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI), reacendeu o debate sobre os limites legais e éticos da atuação estatal no momento da comunicação processual. Embora o caso pertença ao campo do Direito Processual Penal, é possível – e relevante – traçar um paralelo com o Direito Processual Civil, que oferece parâmetros interessantes à reflexão.
O Código de Processo Civil (C) traz, em seu artigo 244, IV, uma regra clara: “não se fará a citação, salvo para evitar o perecimento do direito, quando o citando estiver doente, em estado grave”. O dispositivo revela uma preocupação com a preservação da integridade física e emocional do citando, reconhecendo que o ato processual não pode ser exercido de maneira a colocar em risco a saúde ou a dignidade da pessoa acamada.
A proteção contida nesse artigo não se restringe a uma formalidade: trata-se de um verdadeiro limite imposto ao ente estatal, que deve ser exercido com razoabilidade e respeito à condição humana de quem será citado ou intimado. O objetivo da lei, ao proibir a citação nessas circunstâncias, é evitar o agravamento do quadro clínico e proteger o equilíbrio psíquico do indivíduo que, diante da fragilidade, não teria condições reais de compreender o teor da comunicação judicial ou exercer adequadamente seu direito de defesa.
No entanto, o caso do ex-presidente traz elementos que, a meu ver, afastam a incidência dessa proteção. Abstraindo-se, por ora, as implicações de natureza política que naturalmente cercam o episódio e acirram ânimos e opiniões, é preciso analisar os fatos com base no que efetivamente foi divulgado. Embora estivesse em uma UTI, o senhor Jair Bolsonaro realizou transmissões ao vivo nas redes sociais poucas horas antes da intimação, além de receber normalmente visitas de apoiadores e aliados políticos. Esses fatos, amplamente noticiados, indicam que ele se encontrava lúcido, orientado e participativo – ou seja, em plenas condições de receber uma intimação judicial sem que isso comprometesse sua saúde física ou mental.
É evidente que, em situações genuinamente críticas, o ato de citação ou intimação deve ser suspenso. Mas não se pode transformar o ambiente hospitalar, por si só, em escudo contra a atuação da Justiça. O que se deve analisar é a real condição da pessoa intimada. E, nesse caso específico, não há, em tese, ofensa ao espírito do artigo 244 do C, tampouco a interpretação da vontade do legislador, pois o ex-presidente não estava incapacitado ou impossibilitado de compreender o conteúdo da intimação.
O debate, claro, não deve ser ideológico, mas jurídico. O processo – seja civil ou penal – precisa respeitar garantias fundamentais, mas também deve evitar ser instrumentalizado como estratégia de blindagem pessoal. O Direito Processual Civil, mesmo fora do palco principal desse caso, oferece uma lente útil: a comunicação processual deve respeitar limites humanos, mas também não pode se sujeitar a manobras.
Mais do que a discussão sobre um nome ou episódio de natureza política, o que se coloca em evidência é a credibilidade e a razoabilidade da Justiça, assim como a necessidade de uma interpretação legal compatível com as particularidades do caso concreto. O verdadeiro desafio, neste contexto, é conciliar o rigor normativo com a ponderação exigida pelas circunstâncias fáticas.
Ana Flávia Sales é Advogada, Mestre, Professora de Direito Processual Civil