
Por um lado, ele é vibrante, presente, amoroso; por outro, tantas questões ainda em aberto, sob a perspectiva feminina: um certo machismo enrustido, “deformado pela modernidade”, que ao masculino cabe a liberdade de inúmeras escolhas; à mulher, como se nunca boa o suficiente para “manter o seu homem em casa”, é atribuída a responsabilidade da estabilidade, da solidez, aquela que se esgota em promover e servir a família, em carregar os fardos do cotidiano, porque havia se construído com a ideia de que “amar é ficar”.
O pai é defensor das igualdades entre homens e mulheres, das liberdades, do desejo mútuo e dos jogos eróticos. Mas, por volta dos 60 anos, agarrou-se à máxima da juventude: “Um homem deve seu sucesso à primeira esposa, e a segunda esposa ao seu sucesso”.
Lançado no Brasil pela Autêntica Contemporânea, com tradução da escritora Adriana Lisboa, “O garoto do meu pai” é uma carta de amor da filha, que “desafiou” o desejo paterno ao nascer mulher.
O romance discute, em meio a memórias felizes e irreverentes, num gesto de amor e com muita sensibilidade e honestidade intelectual, um sem-número de questões que ainda viajam as gerações e se embricam à narrativa.
O sofrimento da mãe, que parece “inscrito num destino feminino”; o pai, a quem percebe como “instrumento de um sistema”; a preferência por filhos homens, o que, em certo momento, impõe-se subjetivamente à criança que busca a aceitação.
Tudo dito e posto, Emmanuelle Lambert registra: “Saber que ele sempre me amara, ao seu modo bagunçado e generoso, permitiu que eu me libertasse do seu amor. Às vezes me pergunto se não é impossível para um homem ter uma filha, ou pelo menos se não é impossível na sociedade a que pertenço hoje, tal como ela é. Mas não deixei de amar meu pai. Simplesmente abandonei o garoto que sonhávamos em mim”.
Nascida em 1975, na França, Emmanuelle Lambert é doutora em l etras, com tese defendida em 2003 sobre o teatro de Jean Genet. Escreveu livros como “La désertion”, “Giono, furioso” (vencedor do prêmio Femina de Ensaio em 2019) e “Sidonie Gabrielle Colette”.
Depois de ter trabalhado com o escritor Alain Robbe-Grillet na publicação de alguns de seus textos, em 2009 dedicou-lhe o seu primeiro livro, “Mon grand écrivain”.
Em 2011, publicou o romance “Um peu de vie dans la mienne” e, em 2013, “La tête haute”, ambos editados pela Les Impressions Nouvelles. Em 2012, assinou “Alain”, posfácio do livro de memórias de Catherine Robbe-Grillet.
Leia, a seguir, a entrevista exclusiva de Lambert ao Pensar do Estado de Minas:
Como encarar a finitude da vida?
O cérebro sabe sempre, mas não estamos nunca prontos para aceitar a morte das pessoas que amamos. Isso não nos impede de saber que não temos escolha. Mas há uma espécie de rebelião do coração.
E acho que isso corresponde a algo muito potente, um princípio vital, que coloca na morte a recusa de morrer. Eu vi isso nos últimos instantes do meu pai, a máquina, o corpo em seu momento terminal, mas ainda há algo que luta até o fim.
E acho que somos feitos dessa luta entre o desejo de viver e o ar do tempo, que nos lembra que estamos numa ladeira em declive. E o princípio de vitalidade, de vida, de amor, de descoberta, toda essa pulsação que há em nós, luta até o último minuto contra a morte.
Podemos aceitar intelectualmente a ideia, mas há algo na energia vital entre os seres que leva a recusar à morte. E na agonia – palavra que originalmente significa combate – há, apesar de sabermos que ao final a morte vencerá, um combate. E quando escrevemos, é para reverter essa perspectiva. Para que, ao final, não seja a morte a vencedora.
Escrever o livro “O garoto do meu pai”ajudou você a elaborar a morte de seu pai?
Eu não sei como as pessoas em geral fazem, mas sei como o fazem os artistas. E é isso o que eu tento, quando escrevo. Tento fazer arte. Temos essa oportunidade, de quando somos artistas, de transformar aquilo que é doloroso, individual, em algo coletivo. Mas não foi o propósito quando iniciei o livro.
Quando comecei, tinha necessidade de escrever e, pouco a pouco, a gente se reencontra com essa condição artística. Percebemos que isso nos ajuda a fazer coisas, que vão além de nós mesmos, e nos ajuda a lidar com as nossas pequenas dores.
Escrever, então, me ajudou a elaborar a morte do meu pai, mas eu diria que de uma maneira paradoxal, ao me forçar a reviver. Então, é uma elaboração especial. Aceitar a morte verdadeira, ao fazer reviver, por meio da criação e da arte.
Eu diria que elaborei, pois estava entre a aceitação à negação, e a literatura me permitiu finalmente aceitar a morte, mas não ficar em sofrimento. Eu não gosto dessa ideia do luto, não gosto da ideia de que em algum momento terminou com as pessoas que amamos.
Sentimos falta das pessoas que amamos todo o tempo. Todos os dias, até o fim de nossa vida. Mas por outro lado, você pode encontrar um meio de transformar a dor dessa falta, para que ela se torne fonte de uma lembrança agradável, de uma energia transformadora. Meu pai tinha uma personalidade muito alegre, energética.
Então, as minhas lembranças são alegres. Não há razão para não desejar as minhas memórias. Estou absolutamente certa, de que com a velhice, a nossa memória se esvanece, e eu sei, que mais tarde, terei o meu livro. Agora vejo que o escrevi por ele, mas o escrevi também por mim, para o futuro, para as pessoas que amo hoje e, também, por todas as pessoas que têm a quem guardar perto deles.
E é isso o que me dizem as leitoras e leitores ses, que me escrevem, seja porque não têm pai, seja porque têm uma relação ruim com os seus pais, me disseram: “obrigada, agora sei o que é”.
A sua percepção sobre a morte parte de uma perspectiva materialista ou de uma perspectiva religiosa">(foto: Reprodução)
“O garoto do meu pai”
• Emmanuelle Lambert
• Tradução de Adriana Lisboa
• Autêntica Contemporânea
• 128 páginas
• R$ 54,90 (livro)
• R$ 38,90 (e-book)