
A IA na ciência: fagos e afagos
Não podemos continuar prescrevendo antimicrobianos em medicina humana, veterinária e agronomia como se não houvesse amanhã
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Em meados de abril, aconteceu em Viena o 35º Congresso da Sociedade Europeia de Microbiologia e Doenças Infecciosas (ESCMID Global), evento fantástico com a presença de mais de 15 mil profissionais de saúde e sotaques do mundo inteiro. Há mais de 20 anos esse evento faz parte da minha agenda. Tornou-se um importante ponto de encontro com a ciência mundial.
Ao longo desses anos, vimos o surgimento de inúmeras drogas, vacinas e técnicas que mudaram a vida de pacientes em todo o planeta. Vimos o surgimento dos medicamentos e estratégias de saúde pública que tornaram a Aids uma doença crônica e perfeitamente controlável para aqueles que têm o à informação, diagnóstico precoce e medicamentos adequados. Vimos também o lançamento da vacina contra o HPV e a possibilidade de evitarmos vários tipos de câncer em mulheres e homens. O câncer de colo de útero tem possibilidade de se tornar doença do ado, caso as meninas sejam vacinadas por volta dos 11 anos.
Vimos a SARS (2002) e a MERS (2012) anteciparem o que viveríamos com a COVID-19, assim como o surgimento das vacinas e drogas que já estavam em pesquisa controlarem a maior epidemia de nossa história recente. Alertas sobre essa possibilidade foram dados por inúmeros pesquisadores que investigaram as epidemias que antecederam a pandemia de 2020. Os ouvidos surdos do negacionismo político não levaram a sério o que para nós já era algo esperado.
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Vários patógenos com potencial pandêmico, que poderão nos afetar nos próximos anos e estão sob estrita vigilância pelos CDCs europeu, asiático e americano foram discutidos nas centenas de sessões e trabalhos científicos apresentados por pesquisadores de todos os continentes. Enquanto isso, alguns políticos seguem em sua bolha de autopreservação, ignorando solenemente os alertas da comunidade científica.
Uma dessas pandemias que já está em curso há vários anos e que, apesar dos inúmeros alertas, continua sendo vista com os tradicionais olhos e ouvidos de mercador, é a pandemia de genes de resistência microbiana. Os antibióticos que entraram em nossa prática clínica na década de 1940 foram responsáveis pelo aumento da vida média da população mundial em cerca de 10 anos. Alexandre Fleming, na década de 1930, ao pesquisar e descobrir a penicilina, já nos alertava para o risco da resistência se tornar um problema. Mas como somos mestres em autossabotagem, conseguimos transformar essa conquista em uma bomba-relógio.
A resistência microbiana cresceu de forma exponencial nos anos subsequentes ao uso dessas drogas, nos colocando hoje em situação alarmante do ponto de vista de saúde pública. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que entre 2025 e 2050, as bactérias multirresistentes possam causar cerca de 208 milhões de mortes. De 2050 em diante serão cerca de 10 milhões de óbitos por ano, tornando-se a principal causa de morte no mundo.
Novos antimicrobianos são fundamentais para tratar milhares de pacientes, no entanto, essas drogas, além de chegarem ao mercado com preços extremamente elevados, com frequência perdem sua eficácia rapidamente. As bactérias lançam mão de seu arquivo genético de sobrevivência e ficam resistentes a essas novas drogas, quase num piscar de olhos. Ou seja, precisamos de novas soluções para esse problema. Certamente, não podemos continuar prescrevendo antimicrobianos em medicina humana, veterinária e agronomia como se não houvesse amanhã. Educar os novos e velhos profissionais para um uso prudente desses medicamentos é absolutamente fundamental.
O mais irônico é que as bactérias, organismos microscópicos que existem há bilhões de anos, estão nos dando uma lição sobre adaptação e sobrevivência. Enquanto nós, supostos seres superiores, parecemos incapazes de aprender com nossos erros ou de tomar medidas preventivas antes que seja tarde demais. É fascinante como conseguimos transformar uma das maiores descobertas da medicina em uma ameaça a nossa própria existência.
Foi nesse contexto que descobrimos os fagos- vírus que infectam e destroem bactérias. Ou seja, vírus que não infectam nossas células, mas são letais contra bactérias, podendo ser extremamente úteis no tratamento de inúmeras infecções. O processo natural de controle de diferentes populações microbianas sendo utilizado a nosso favor.
Com o uso da inteligência artificial (IA), o mapeamento desses vírus e o entendimento de sua complexa especificidade para cada bactéria têm se tornado cada vez mais rápidos e próximos da prática clínica diária. Do ponto de vista evolutivo, é como se estivéssemos domesticando “cavalos microscópicos” para nos servirem e nos protegerem. Aqui vale a máxima: “Quem com ferro fere, com ferro será ferido”.
Por incrível que pareça, os vírus que nos causam tantos problemas, podem ser nossos importantes aliados nessa longa batalha pela sobrevivência nesse planeta. No ESCMID Global 2025 de Viena, a IA e os fagos foram grandes estrelas. Trabalhos excelentes demonstraram a eficácia e eficiência de vários tipos de vírus no tratamento de infecções graves. Osteomielites crônicas, pneumonias e diversas outras infecções complexas causadas por bactérias super resistentes já são tratadas com auxílio de fagos.
Entender os mecanismos regulatórios da natureza e usá-los em nossa prática diária é o que chamo de o “afago dos fagos”. Esse é o espetáculo da ciência, que nesse momento, mais uma vez encontra-se ameaçada pela absurda política de cortes de verbas para a OMS e universidades americanas do governo Trump. Nós também temos os nossos “vírus” entre nós.
A questão final é: seremos capazes de agir antes que os números alarmantes previstos pela OMS se tornem realidade? Ou continuaremos a tratar esse problema com a mesma negligência com que tratamos tantos outros alertas da comunidade científica? Se continuarmos elegendo indivíduos da mesma estirpe política de Trump, infelizmente já conhecemos a resposta. Nossas escolhas, nossa sentença.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.