Carlos Starling
Carlos Starling
SAÚDE EM EVIDÊNCIA

Os filhos do P

Em vez de buscar a verdade, alimentamos uma cultura do superficial, na qual o algarismo conta mais que a substância

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Calma, pessoal! Não é nada do que vocês estão imaginando. Na imensidão do universo científico – onde caçamos verdades com a mesma garra com que lutamos contra fake news – existe um personagem quase shakespeariano: o valor p. Esse número minúsculo (o tal 0,05) corta a comunidade acadêmica ao meio como Moisés abrindo o Mar Vermelho: de um lado, quem jura que p < 0,05 é sinônimo de verdade absoluta; do outro, os céticos que torcem o nariz a qualquer p 0,05. Aqui, convido-os a refletir sobre essa devoção quase religiosa ao limiar mágico dos cinco centésimos e a enxergar as armadilhas que ele pode esconder. 

Imagine a cena: auditório lotado, jalecos engomados, cafés fumegantes e olheiras científicas de estimação. A energia é de festa, mas a tensão corta o ar. Sobe ao palco uma pesquisadora para mostrar seu tratamento “revolucionário”. Paira a dúvida mais dramática do que final de Copa do Mundo: “E o valor p? Ficou abaixo de 0,05?”.

Se a resposta é “sim”, o salão vira arquibancada: palmas, selfies, convites para podcast. Se diz “não”, o oxigênio desaparece; instala-se o silêncio de velório – alguém acaba de quebrar o dogma. Isso, claro, só se a pesquisadora tiver a coragem de mostrar também os resultados que não brilharam. A ciência, afinal, costuma exibir só os gols; raramente revela os chutes para fora. Como diz o ditado: “Todo mundo vê as pingas que tomo, mas não vê os tombos que levo." 

Esse culto ao 0,05 não mora só nos congressos; ele também reina nas páginas das revistas científicas, onde “significância” virou apelido de “menor que 0,005”. Mas, afinal, que bicho é esse tal de valor p? Em bom português, ele diz quão provável seria toparmos com nossos dados (ou algo ainda mais maluco) se a hipótese nula fosse verdadeira – e a hipótese nula, lembrando, é o “não aconteceu nada de interessante por aqui”. Quando o p cai abaixo de 0,05, a maioria reage como se tivesse achado ouro: “Eureka, descobrimos algo incrível!” Só que esse pensamento direto-ao-pote esconde várias armadilhas: de interpretações tortas a conclusões apressadas, ando por fama imerecida do próprio número mágico. 

A faísca dessa conversa nasceu da leitura recente de um artigo de Sander Greenland e colaboradores, publicado em 2016 na prestigiada revista científica European Journal of Epidemiology (vol. 31, p.337-350). Nele, os autores am o valor p no raio-x e avisam sem rodeios: ele não pode ser o único juiz da partida. Concentrar-se só nessa cifra é como andar num labirinto olhando apenas para placas vermelhas – a porta de saída está logo ali, mas a gente insiste em seguir a setinha mágica do 0,05.

Chamemos de “filhos do P” (com trocadilho malcriado mesmo!) aqueles pesquisadores que beijam o 0,05 na testa e esquecem todo o resto. Para eles, se o resultado sai “significativo”, automaticamente vira “importante” – ponto final. Só que essa lógica encolhe o mundo: um p=0,049 pode parecer mais charmoso que um p=0,07, mas será que muda algo de verdade? E se o efeito for tão pequenino que não mexe na vida de ninguém? Ao caçar apenas números mágicos, esses devotos trocam o chapéu de investigador pelo de colecionador de figurinhas estatísticas, deixando a realidade em segundo plano. 

E o que dizer sobre as armadilhas da publicação científica? A pressão por “resultados bombásticos” faz muita gente forçar a barra para tirar um p<0,05 do cilindro mágico. Surge então o famigerado “p-hacking”: corta-e-cola variáveis, muda modelo, troca filtro – qualquer gambiarra vale para espremer significância. Às vezes o truque é o inverso: esconder o que deu “não significativo” para não manchar o currículo. Resultado? Em vez de buscar a verdade, alimentamos uma cultura do superficial, na qual o algarismo conta mais que a substância. 

Claro, os “filhos do P” também têm seus advogados de defesa. Afinal, o valor p é uma ferramenta útil – se usada com juízo, revela bons sinais nas entrelinhas dos dados. Mas convém lembrar: ciência é novela complexa, cheia de personagens e reviravoltas que jamais caberão em um único dígito mágico. A verdadeira “significância” pede olhar para o cenário inteiro: desenho do estudo, coerência biológica, tamanho do efeito, possíveis vieses e por aí vai. O p sozinho é como legenda fora de sincronia: até conta uma história, mas deixa muito choro e riso fora da tela. 

Albert Einstein vivia cutucando os acomodados, e costumava dizer, em tom de piada séria: “teoria é apenas um palpite, e o palpite é apenas uma teoria". Isso nos leva a questionar se a dependência excessiva de uma única pecinha do quebra-cabeça – como o valor p – pode nos afastar do verdadeiro espírito da ciência, que é perguntar, duvidar e entender o mundo. Quando o número vira astro solitário, quem acaba encolhendo somos nós mesmos: gente significativa não deveria caber em três casas decimais. 

Portanto, quando for encarar o valor p, respire fundo, vista seu chapéu de Indiana Jones epidemiológico e leve junto uma boa dose de perspicácia (e senso de humor). A ciência é séria, sim, mas merece que a gente ria um pouco da própria seriedade – até porque o caminho está cheio de incertezas e curvas inesperadas. Em vez de ficarmos s ao rótulo de “filhos do P”, vamos virar exploradores de primeira linha: gente que questiona, investiga, coleciona dúvidas e aprende com cada interrogação que o universo nos joga de volta. 

O recado fica claro: não deixe três casas decimais mandarem no seu cérebro. O p é só ator coadjuvante; quem dá show é a poesia contida na história que decidimos contar.

*A coluna de hoje contou com a colaboração do amigo e brilhante epidemiologista Wanderson Oliveira.

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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