Depois de encenar “Partido” (1999), baseado na obra “O visconde partido ao meio” (1951), de Ítalo Calvino, o Grupo Galpão volta, agora, a tomar uma obra literária de ficção como base para um espetáculo.

A montagem “(Um) Ensaio sobre a cegueira”, que estreia nesta quarta (30/4), com direção e dramaturgia de Rodrigo Portella, é uma adaptação do romance “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago (1922-2010), publicado há 30 anos.


Depois de “Cabaré Coragem” (2023), que teve direção de Júlio Maciel, integrante do grupo, o Galpão pensou em trabalhar com alguém de fora e convidou Portella. O diretor conta que conheceu o grupo na segunda metade dos anos 1990, mais ou menos na mesma época em que leu “Ensaio sobre a cegueira”.


Ele se recorda de ter ficado apaixonado pelo livro, ter pensando que ele poderia ser adaptado para o palco e ter tido a certeza de que só com o Galpão isso seria possível.

“A coisa que mais me chamou a atenção no romance é a experiência coletiva que Saramago explora. São muitos personagens. Pensei que fazer disso uma peça com um grupo como o Galpão seria muito interessante, porque eles têm um senso de comunidade que tem a ver com o livro, têm a noção de que a potência está no coletivo”, diz.


Na história, o mundo é tomado por uma “cegueira branca” que se alastra rapidamente. Diante do perigo do contágio, as autoridades resolvem confinar as pessoas que já foram acometidas por ela ou que tiveram contato com os “contaminados”.

A trama do romance focaliza um grupo que é isolado em um manicômio e largado à própria sorte, numa situação que coloca à prova os frágeis limites éticos que separam a humanidade da barbárie.


Convites recíprocos

Em 2023, Portella estava com duas peças em cartaz em Belo Horizonte – as premiadas “Tom na fazenda” e “Ficções”. Ele esteve na cidade e convidou os integrantes do Galpão para assisti-las.

Ato contínuo, foi convidado para uma visita à sede do grupo. O diretor conta que, assim que entrou no Galpão Cine Horto, foi interpelado se não tinha interesse em dirigir o grupo em uma montagem.


“Cheguei para tomar um café e era uma espécie de armadilha, já estavam prontos para fazer o convite. Mal sabiam que eu também já vinha com essa intenção. Falei: olha, há mais de 20 anos estou maturando a possibilidade de fazer a adaptação de um romance com vocês. E falei do 'Ensaio sobre a cegueira'. Eles adoraram a ideia e, a partir daí, comecei a trabalhar na adaptação”, conta.


Eduardo Moreira assente que a ideia foi muito bem recebida. Ele diz que todos os integrantes iram Saramago e, em especial, o livro lançado em 1995.

“Ele traz essa mensagem de que aquele grupo de pessoas só sobrevive porque faz um pacto coletivo. Saramago escreveu na década de 1990 do século ado e o mundo piorou muito. O século 21 é um fracasso, com essa coisa das redes sociais, do individualismo, do neoliberalismo, da violência, das pessoas avessas a qualquer solução coletiva, na base do ‘cada um por si e Deus por ninguém’. É uma mensagem que faz mais sentido hoje do que à época”, afirma.


Estão em cena em “(Um) Ensaio sobre a cegueira” oito integrantes do Galpão – ficaram de fora Teuda Bara, Arildo de Barros, Beto Franco e Chico Pelúcio – e o ator convidado Luiz Rocha. Além deste elenco, 14 pessoas da plateia são chamadas a participar. E

las optam por isso comprando a modalidade de Ingresso Experiência. Esses coadjuvantes voluntários têm os olhos vendados e ficam em cena a maior parte do espetáculo, que tem aproximadamente 140 minutos de duração.


Construção em camadas

Portella aponta que uma questão central de sua adaptação da obra de Saramago para o teatro está na elaboração de um ator-formulador, que constrói uma dialética permanente entre narrativa e drama. Ele diz que cada artista em cena contém em si três camadas.

Adriana Esteves (foto) quase fez a Babalu de 'Quatro por quatro', novela de Carlos Lombardi, mas desistiu da empreitada, para sorte de Letícia Spiller. Globo/divulgação
A Babalu de 'Quatro por quatro', que estreou na Globo em 1994, projetou Letícia Spiller no mundo das novelas. Mas a ex-paquita lourinha, par romântico de Marcelo Novaes, o Raí (foto), não foi o primeiro nome para o papel. Bazilio Calazans/Globo
Luzia Avellar (foto) chegou a ser escolhida pelo diretor Walter Avancini para estrelar 'Xica da Silva' (Manchete), mas depois ele mudou de ideia e o papel ficou com a então adolescente Taís Araújo. Luzia diz que Avancini agiu acertadamente. Instagram/reprodução
Valéria Valenssa, a 'globeleza', quase estrelou a novela 'Xica da Silva' na Manchete. Recusou o papel por causa de viagem a serviço Paulo Bravos/Diario de SP/AG/2006
Taís Araujo fez sua primeira protagonista em 'Xica da Silva', novela lançada pela extinta TV Manchete em 1996. Porém, a adolescente carioca de 17 anos não foi a primeira opção para o papel. Irineu Barreto Filho/divulgação
O primeiro Zé Leôncio da 'Pantanal' original seria Carlos Alberto (1925-2007), mas o ator (foto) se desentendeu com a produção do folhetim da Manchete. Além disso, não sabia andar a cavalo! Nelson di Rago/Globo
Claudio Marzo, que fez muito sucesso como Zé Leôncio e Velho do Rio (foto) na primeira versão de 'Pantanal' (1990), quase não entrou no elenco da novela da extinta Rede Manchete. Manchete/reprodução
Débora Duarte (foto) seria a mocinha de 'Escrava Isaura', no lugar de Lucélia Santos, se dependesse da vontade do novelista Gilberto Braga Tupi/reprodução
Louise Cardoso foi um dos nomes cotados para viver a protagonista de 'Escrava Isaura', novela que estreou em 1976 Globo/reprodução
Dá para imaginar 'Escrava Isaura', novela brasileira exportada para uma centena de países, sem Lucélia Santos (foto) como a mocinha às voltas com o terrível Leôncio (Rubens de Falco)? Pois isso quase aconteceu, porque Lucélia não era a preferida de Gilberto Braga, autor do folhetim. Globo/reprodução
Tônia Carrero (1922-2018) recusou o papel de Odete Roitman, a protagonista de 'Vale tudo' na versão anos 1980. Globo/reprodução
Você acha que Odete Lara (1929-2015) tem cara de vilã? Pois a atriz era a preferida do novelista Gilberto Braga para viver Odete Roitman na primeira versão de 'Vale tudo'. Beto Novaes/EM/D.A Press/2006
Acredite se quiser: Beatriz Segall (1928-2018) foi a terceira opção para viver Odete Roitman na versão original de 'Vale tudo', que estreou em 1988 na Globo. O novelista Gilberto Braga tinha outros nomes para a vilã. Nelson di Rago/Globo


“De dentro para fora, você tem a do personagem, que está vivendo a história na ficção, e a do ator, que também se manifesta. Há, ainda, uma camada intermediária, que é a do narrador ou formulador, como estamos chamando. Na peça, elas são híbridas, se confundem”, afirma.


Segundo ele, essa opção se deveu ao caráter ensaístico do romance de Saramago. “Ele mesmo falava que se trata mais de um ensaio ficcional do que propriamente de um romance. No processo de adaptação, entendi logo que esse caráter ensaístico deveria estar na encenação, que eu deveria abrir um espaço mais performativo para que o ator pudesse também estar presente em uma camada mais externa, e não apenas a serviço do personagem. Aí peguei a ideia do rapsodo e traduzi isso de uma forma um pouco diferente”, conta. 

“(UM) ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA”
Espetáculo do Grupo Galpão, com direção e dramaturgia de Rodrigo Portella, a partir do romance de José Saramago. Estreia nesta quarta-feira (30/4), às 20h, no Galpão Cine Horto (Rua Pitangui, 3.613, Horto). Ingressos a R$ 80 (inteira) e R$ 40 (meia), Ingresso Experiência, limitado a 14 por sessão, a R$ 80 (inteira) e R$ 40 (meia), à venda no Sympla. Temporada até 1º/6, de quarta a sábado, às 20h, e domingos, às 19h. Interpretação em Libras às quintas e domingos.





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