Medo da maioridade

A idade da incerteza: por que chegar aos 18 anos angustia jovens em abrigos

Jovens que cresceram em abrigos, muitos com déficit de aprendizagem ou cognição, se veem acuados ao chegar à maioridade e são obrigados a deixar as unidades

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Desde os 6 anos, Luca* (não identificado com nome completo para preservar sua identidade) conhece apenas uma ideia de lar: o acolhimento institucional. Cresceu sob as regras da casa, a rotina dos educadores e o convívio com outras crianças que, como ele, foram afastadas de suas famílias por decisão da Justiça. Agora, aos 18, encara um futuro incerto. Por ter atingido a maioridade, já deveria ter deixado a Casa dos Anjos, no Bairro Santa Mônica, na Região de Venda Nova, em Belo Horizonte, onde vive há cinco anos. Mas não tem para onde ir. Assim como ele, outros 551 acolhidos em Minas Gerais terão que, até 2026, se despedir das casas de acolhimento onde aram a infância e a adolescência, segundo dados levantados pelo Estado de Minas no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA). E, para todos eles, essa transição é um encontro com angústia e a incerteza.

São jovens que cresceram longe da família, afastados por decisão judicial devido a violência, abusos, negligência ou orfandade. Durante a infância e adolescência, não foram adotados e aram anos dentro do sistema de acolhimento – ainda que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) determine que a permanência nessas instituições deva ser temporária, com limite de um ano e meio. Mas, na prática, hoje 1.529 crianças e adolescentes em Minas Gerais já vivem nesses espaços há mais de dois anos – alguns, como Luca, há mais de uma década.


O acolhimento institucional é segmentado por idade: de 0 a 6, de 7 a 12 e de 12 a 18 anos. Luca foi retirado da guarda da mãe aos 6 anos e, antes da Casa dos Anjos, ou por outras unidades. O tempo no abrigo é tão longo que ele já não se lembra com exatidão quando deixou a casa dos pais. Para ele, o acolhimento é a referência de família. Tanto que nunca gostou do apadrinhamento afetivo – um programa que busca criar laços entre acolhidos e pessoas de fora.


“Ele começa a não querer ter vínculo externo, porque a casa dele é aqui. O apadrinhamento era o grau do inável para ele, deixar de estar no acolhimento para ir para casa de uma pessoa. Para ele, não: aqui é a sua família. É como se dissesse: ‘Eu não preciso de mais ninguém’”, conta Cláudia Rezende, coordenadora da Casa dos Anjos, que não entra em detalhes sobre o que levou o jovem até o acolhimento.

Uma família com prazo de validade

Mas essa família, conforme as regras do sistema de acolhimento, tem data para acabar. Todos os que aram a infância e a adolescência em abrigos precisam deixá-los ao completar 18 anos. E nesse momento enfrentam, além das barreiras sociais e econômicas, a difícil agem para a vida adulta sem uma rede de apoio.

Com algum grau de deficiência intelectual, não diagnosticada pois não chegou a ar por uma avaliação psiquiátrica, Luca demonstra dificuldade em nomear o impacto da maioridade. Quando tenta explicar o que sente ao ter que partir, ele procura palavras, hesita, se perde no raciocínio. No fim, apenas diz, em um tom baixo e pausado: “É triste que não vai ter casa”.

Pela legislação, Luca já não deveria mais estar na Casa dos Anjos. A permanência dele no abrigo é uma responsabilidade assumida internamente, já que, ao atingir a maioridade, ele deixa de estar sob a tutela da Vara da Infância e Juventude, e a entidade a a responder por suas atitudes.

“Não tem como, é desumano. Ele ou a vida toda no acolhimento. Como pegar e descartar? Porque acaba sendo um descarte. O que eu estou apresentando para ele lá fora? Aí vem a resposta: ‘A unidade não está trabalhando a autonomia’. Mas eu preciso de apoio para trabalhar autonomia. Ainda mais com um quadro de sofrimento mental”, afirma a coordenadora.

Assim como Luca, em 2023, segundo estatísticas do Sistema Único de Assistência Social (Suas) levantados pelo Núcleo de Dados do Estado de Minas, 92 pessoas que ainda estavam em instituições mineiras de acolhimento destinadas a crianças e adolescentes já eram maiores de idade. Agora, a equipe da Casa dos Anjos busca uma alternativa para que Luca e um colega, também recém-saído do acolhimento, morem juntos. “Esse jovem tem condições de cuidar dele? Não. Mas é o desejo dos dois”, afirma Cláudia.

Em Belo Horizonte, há apenas duas repúblicas para jovens egressos do acolhimento, parte do único projeto desse tipo em Minas Gerais, que oferece 12 vagas – seis para homens, todas já ocupadas, e seis para mulheres. Outra possibilidade seria uma casa de acolhimento para adultos, que recebe diferentes perfis de pessoas em situação de vulnerabilidade. Mas sem contar com e específico necessário para quem ou a vida dentro do sistema de acolhimento.


Perda dos laços de parentesco


Para muitos, voltar para suas famílias nem sequer será uma opção. Seis em cada 10 acolhidos não recebem visitas familiares, segundo uma pesquisa da organização sem fins lucrativos Aldeias Infantis, dedicada ao cuidado e à proteção de crianças, adolescentes, jovens e suas famílias.

Luca sabe que, a qualquer momento, estará sozinho. Ele trabalha, mas o contrato acaba em março e o rapaz não tem certeza se terá outra fonte de renda. Quando pensa no futuro, fala em dividir aluguel com o amigo e lista o que precisaria para começar uma vida independente: um fogão, uma geladeira. Mas, na prática, parece não compreender totalmente o impacto de viver sem a tutela do abrigo que sempre chamou de casa. “Nós faz 18 e não tem nada”, constata.


A mãe de Luca até manifestou interesse em recebê-lo de volta, mas a realidade torna isso inviável, já que ela é alcoólatra crônica. “Ele tem limitações. Como ele vai cuidar dela, se ele também precisa de cuidados?”, questiona a coordenadora da Casa dos Anjos. Em meio a tantas questões, o tempo do jovem está se esgotando, e ele pede para, pelo menos, terminar o ensino médio antes de sair. “Ele quer ganhar tempo, porque vai completar 18 no fim do ano. Mas não é algo possível. Só vai só estender o sofrimento. A gente consegue prolongar, mas por um curto período”, ressalta Cláudia Rezende.
O medo que vem com a maioridade

Para os jovens acolhidos, a aproximação dos 18 anos representa uma espécie de contagem regressiva. E eles mesmos repetem isso uns aos outros. Falta um mês, uma semana, dois dias. “Você vai pra rua”, dizem. A frase, dita como uma brincadeira, esconde um medo real. Para muitos, a maioridade significa solidão, incerteza e a perda do único lugar que, por bastante tempo, chamaram de lar.

Desde que chegam ao acolhimento institucional, os adolescentes sabem que a medida de proteção deve ser provisória. Mas a realidade é outra. “Infelizmente, muitos deles perdem o vínculo com a família e, quando os 18 anos se aproximam, eles acabam adoecendo”, aponta Cláudia Rezende, coordenadora da Casa dos Anjos.

Ela recorda a história de um jovem que não escondia o receio de crescer: “Eu tenho medo de completar 18 anos”, dizia ele, sem rodeios. “Foi alguém que conseguiu verbalizar, assim com todas as letras, a questão de se tornar adulto”, conta. Um ano antes, o mesmo jovem implorava para continuar no abrigo, mesmo como funcionário. “Deixa eu morar ali, deixa eu ficar, eu vou cuidar dos meninos, eu vou ficar quietinho”, suplicava. “Mas não é sobre isso que estamos falando. É sobre o que vem depois”, descreve Cláudia à reportagem.


A vida adulta traz solidão e adoece


Após o desligamento, teoricamente os jovens são acompanhados por até seis meses – período que pode ser estendido em alguns casos. Mas o e, feito por equipes dos Centro de Referência de Assistência Social, nem sempre acontece. Com profissionais sobrecarregados e uma política pública precarizada, muitos adolescentes acabam desassistidos.

Só no último ano, 116 jovens mineiros foram desligados do sistema de acolhimento por maioridade, conforme consta no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA). A ausência de políticas de acompanhamento desses jovens dificultou até mesmo o trabalho da reportagem de encontrar fontes dispostas a compartilhar suas experiências.


Diferentemente de quem tem uma família e um lugar seguro para voltar, eles não têm um colchão para se recostar ou um prato de comida garantido a cada dia. Os vínculos familiares, na maioria das vezes, estão rompidos ou nem sequer existiram. Sem estrutura, sem e, sem rede de apoio, a transição para a vida adulta faz adoecer.


Sofrimento mental afeta a maioria


Muitos desses jovens desenvolvem quadros de sofrimento mental ainda no acolhimento. “Percebemos uma desorganização emocional, uma apatia. Eles sabem que está acabando. E nós não temos políticas para o pós-acolhimento”, aponta Cláudia. Na Casa dos Anjos, mais de 70% dos acolhidos apresentam algum tipo de sofrimento mental.

Os jovens chegam lá por medidas de proteção após sofrerem violações de direitos, explica Fernanda Farnesi, psicóloga da instituição. A casa, que acolhe exclusivamente adolescentes, recebe, em sua maioria, jovens transferidos de outras unidades, depois de terem sido retirados de suas famílias ainda na infância.

“Eles estão aqui para que os direitos sejam garantidos e que a gente consiga evitar novas violações de direitos, mas aí, no final da medida, eles acabam sendo violados, porque saem sem preparação nenhuma. Será que nós também não somos violadores enquanto sociedade?”, questiona. “E eles sentem como um abandono, porque se aqui virou minha família, e com os 18 anos eu tenho que sair, a minha família está me abandonando”, completa.

Procurado pela reportagem, o governo de Minas listou como alternativas para jovens egressos do acolhimento: retorno à família de origem, família substituta ou adoção; acolhimento em repúblicas; ou pagamento de aluguel social, mas sem detalhar como cada medida é implementada.

A dificuldade de adaptação à independência não está apenas na falta de recursos financeiros, mas também na ausência de apoio emocional e de rede de e. “Mesmo quando há programas que garantem auxílio financeiro temporário, muitos não dão conta. Eles entram em depressão, ficam desorganizados. Porque não é só dinheiro. É emocional, é rede de apoio”, reforça Cláudia Rezende.

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O apadrinhamento afetivo é uma tentativa de reduzir esse impacto. “Eles ficam mais fortalecidos para sair da unidade de acolhimento quando completam os 18, um pouco mais preparados. Porque a gente sabe que ninguém está 100% preparado, ainda mais nessa situação”, aponta a coordenadora da Casa dos Anjos.

Ela lembra de um adolescente que desejava muito um padrinho, mas, ao ser inserido em uma nova família, sentiu-se deslocado. E se desorganizou emocionalmente a ponto de ir para a rua, gritar. O padrinho, assustado, se afastou, não voltou mais para ter esse contato, para entender o que aconteceu. “Qualquer erro que nossos meninos cometem, eles são abandonados. Porque os filhos da gente tensionam, erram, acertam e os pais estão lá para tentar novamente. Com nossos meninos, o erro é uma vez só; não tem segunda chance”, ressalta.

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