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Medo da maioridade

Sem família e estigmatizados: a dura realidade de quem vive em abrigos

Perda do vínculo familiar é só o primeiro baque para jovens abrigados. Discriminação, barreiras na escola e falta de perspectiva de renda

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Minas Gerais abriga hoje 3.905 crianças e adolescentes em acolhimento institucional. Atrás apenas de São Paulo, que tem 9.613 acolhidos, o estado se destaca pelo alto número de menores afastados de suas famílias por situações de violência, negligência ou abandono. Entretanto, apenas 16,5% dessas crianças e adolescentes estão aptos para adoção. Isso significa que a maioria deve permanecer nas instituições até a maioridade, vivendo uma infância e adolescência marcadas por rupturas, saudades e recomeços incertos.

O que deveria ser uma medida protetiva temporária, conforme estabelece a lei, muitas vezes se torna um lar definitivo até os 18 anos. Quase 40% dos acolhidos em Minas Gerais estão há mais de dois anos em situação de acolhimento. Quando atingem a maioridade, precisam deixar as instituições sem uma rede de apoio para a vida adulta, muitas vezes sem concluir os estudos e sem uma fonte de renda fixa.


A institucionalização, por sua própria natureza, impõe barreiras à autonomia, capacidade repetidamente destacada por profissionais, poder público e especialistas ouvidos pelo Estado de Minas ao longo da apuração desta reportagem como algo a ser construído nesses jovens. No acolhimento, eles seguem uma rotina parecida com a de uma casa, mas com limitações, muitas resultantes da própria política de proteção.


“Os mesmos critérios que usaríamos se fossem nossos filhos, usamos para os meninos do acolhimento institucional. Eles fazem algumas tarefas simples, como varrer uma escada ou cortar um alimento para o almoço”, explica a psicóloga Fernanda Farnesi, da Casa dos Anjos, instituição de acolhimento que atende adolescentes entre 12 e 18 anos em Belo Horizonte.

Barreiras com o mundo exterior


A alimentação chega pronta, e a experiência de ir ao mercado ou lidar com dinheiro não faz parte da rotina, o que compromete a preparação para a vida fora do acolhimento institucional. “A gente até faz algumas ações, ensinamos sobre preços e consumo, mas, na prática, é algo que eles não vivenciam”, explica Fernanda Farnesi. As tarefas domésticas são divididas, mas, se um jovem se recusa a colaborar, a equipe precisa intervir e assumir a função para manter a rotina. “Isso gera uma zona de conforto que pode dificultar a transição para a vida adulta”, alerta a psicóloga.


A tentativa de criar uma rotina familiar dentro das instituições também esbarra em características próprias do acolhimento institucional. Enquanto uma família oferece continuidade e estabilidade, os abrigos funcionam em turnos. Um cuidador entra às 7h e sai às 19h, sendo substituído por outro. Essa rotatividade, inerente ao sistema, dificulta a construção de vínculos e reforça, segundo a psicóloga, a sensação de não pertencimento. “Muitos desses meninos crescem sem a noção de que podem pertencer a um outro espaço por terem sido institucionalizados por um período prolongado da vida”, aponta Fernanda Farnesi.


O peso de se tornar “adulto”


A vida no acolhimento institucional carrega marcas difíceis de apagar. Para muitos, o afastamento da família é apenas o início de uma série de rupturas. A evasão escolar é uma das faces mais visíveis, e muitos já chegam ao acolhimento com uma defasagem educacional significativa, agravada pelo preconceito e pela falta de apoio pedagógico. Mais de 15% dos acolhidos no país apresentam dificuldades constantes na escola, situação que compromete suas chances futuras de inserção no mercado de trabalho, como revela pesquisa da organização Aldeias Infantis, divulgada em 2023.

Poucos conseguem concluir o ensino médio enquanto ainda estão no acolhimento, e a maioria dificilmente retomará os estudos após sair. “Tenho um adolescente de 15 anos que acabou de ir para o 6º ano. Isso nos preocupa muito. A EJA (Educação de Jovens e Adultos) ajuda a acelerar, mas, quando saem do acolhimento, as dificuldades aumentam ainda mais. São pouquíssimos os que conseguem concluir os estudos. Teoricamente, aos 18 anos eles deveriam estar formados, mas a realidade é outra. No meu tempo de trabalho, apenas um conseguiu concluir”, conta a coordenadora da Casa dos Anjos, Cláudia Rezende, que atua na área há mais de 30 anos.

Essa lacuna educacional tem impacto direto sobre as oportunidades futuras, e se torna mais um obstáculo para a inserção no mercado de trabalho. Os programas de trabalho protegido, que auxiliam na transição para a vida adulta, são limitados e muitas vezes se encerram quando os jovens atingem a maioridade.


“A oferta de trabalho é reduzida. Fica mais difícil para esses jovens se reintegrarem. Muitos saem do acolhimento sem nunca terem ado por um trabalho protegido, seja por falta de vagas, seja por falta de preparo ou imaturidade. Isso dificulta ainda mais, porque, ao completar 18 anos, eles precisam se virar sozinhos”, alerta a psicóloga da Casa dos Anjos. “Não há uma preparação também do ponto de vista profissional. Muitas vezes, conseguimos um trabalho protegido para garantir alguma autonomia, mas esse tipo de emprego também se encerra quando eles atingem a maioridade”, completa.


A marca do preconceito


O estigma enfrentado por jovens em acolhimento os acompanha para além das instituições. “Na escola, eles são discriminados, confundidos com adolescentes que cometeram atos infracionais. Mesmo que fiquem quietos, são alvo de preconceito. Se reagem, querem tirá-los da escola”, denuncia Cláudia Rezende.

Além disso, quase 15% dos acolhidos mineiros prestes a completar 18 anos até 2026 possuem algum tipo de deficiência intelectual ou física, segundo dados do SNA, o que expõe outro problema do sistema: o o precário a cuidados com a saúde mental. Muitos carregam o estigma de que buscar ajuda psicológica é “coisa de doido”. E, quando aceitam, não há profissionais suficientes.

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“Quando há atendimento, ele é escasso, uma ou duas vezes por mês. Atendimento psiquiátrico? Não existe na rede. Como tratar essas questões?”, questiona Cláudia Rezende, sem encontrar respostas. “Estar no acolhimento adoece”, resume a coordenadora, com a autoridade de quem há três décadas lida com esses dilemas.

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