Morre Chico Filizzola, dono das lendárias Quadras do Vilarinho, aos 80 anos
Francisco Filizzola deixa um legado de valorização da arte periférica, do funk e rap. Ele dizia que todos eram iguais nos eventos que realizava
compartilhe
Siga noFrancisco Filizzola, proprietário das lendárias Quadras do Vilarinho, em Venda Nova, Região de BH, morreu no último sábado (26/4), dois dias após completar 80 anos. A família não informou a causa da morte e preferiu destacar a trajetória em vida. Conhecido como Chico, o belo-horizontino deixa um legado de valorização da arte periférica, tendo sido o criador de um dos palcos mais icônicos de bailes funks e defensor da música nos subúrbios da capital mineira por mais de três décadas.
Leia Mais
Assim como na vida do público e artistas que tocavam no espaço, as Quadras do Vilarinho foram muito importantes na trajetória de Francisco, como conta o filho dele, Rafael Rebouças, de 43 anos. Muito abalado pela morte do pai, ele reuniu forças para contar como a felicidade de Chico eram os frequentadores do espaço em que foi dono por décadas.
Rafael relembra que o pai fazia questão do espaço ser o melhor para o público, e que ele amava ver a casa cheia, fosse repleta de música e com pessoas dançando ou com as peladas de futsal. Ao longo dos anos, o filho de Chico conta que foram muitas as ocasiões em que pessoas tentaram fechar as quadras, perseguição que Rafael associa ao preconceito contra o funk e questões sociais. No entanto, Francisco lutava para manter as portas sempre abertas para todos.
Recordando da humildade e importância que o pai via no espaço como cenário para surgimento e desenvolvimento da arte periférica, Rafael relembra quando era adolescente e sugeriu a Francisco a criação de um camarote na quadra, para ganharem um dinheiro extra. O pai negou veementemente a ideia, dizendo que da porta para dentro todos ali eram iguais. “Não quero que um cara se sinta superior porque tem dinheiro”, disse o proprietário do espaço ao filho na ocasião.
Ricardo Malta, de 60 anos, conheceu Francisco Filizzola em 1982, ano em que as quadras foram inauguradas. Desde então, caminhou ao lado do querido amigo, além de ter participado da trajetória longeva do espaço em Venda Nova. A princípio, jogava futsal no espaço, depois de uns anos, com a morte do irmão que comandava as músicas, foi convidado por Francisco a assumir o trabalho, mesmo que sua especialidade fosse a dança.
“Se eu sou o profissional e professor que eu sou hoje foi graças ao Chico”, diz Malta, que atualmente é docente de inclusão em cursos oferecidos pelo Programa PUC Inclusiva de Apoio à Pessoa com Deficiência e Reabilitadas do INSS. Em todos esses anos, o dançarino conta que Francisco o apoiou das mais diversas formas, desde o deixando usar um espaço da quadra para estudar a apoiá-lo quando perdeu a visão, em 2003.
Ricardo Malta reforça o fato de que as Quadras do Vilarinho eram o prazer e o amor de Chico, que também gostava de andar de moto. O amigo de longa data de Francisco o descreve como um “ser humano único, que sempre olhava pelo seu público” e mudou a região e a cena cultural. Ele conta ainda que o sonho do dono das Quadras da Vilarinho era a volta dos bailes funks no espaço, que precisou ser fechado durante a pandemia.
A paixão e o carinho que o dono das quadras tinha com o público e os artistas que lá se apresentavam ficam claros nas publicações em homenagem a ele. No instagram, o cantor conhecido como ‘Das Quebradas’ lamentou a perda de Chico, “aquele que abriu as portas para a música black, o funk, o rap e a música urbana e periférica do estado de Minas Gerais.” O artista reconheceu a luta de Francisco para manter as portas abertas para juventude periférica de BH por mais de 40 anos e reforçou a diferença que ele fez: “Você vai, mas o seu legado fica!”
A página Turma do Vinil também publicou uma nota de pesar, reconhecendo Francisco como semeador de encontros, amizades, sonhos e memórias que marcaram gerações. “Sua contribuição para a cena cultural de Minas Gerais e valorização dos DJ's é imensa e eterna. Foi nas quadras da Vilarinho, sob sua condução apaixonada, que tantos de nós vivemos momentos inesquecíveis, embalados pelo som, pela dança e pela força da coletividade”, afirma.
História das quadras
As noites com muita música e dança nas décadas de 1980 e 1990 são evocadas quando o assunto são as Quadras do Vilarinho. O espaço, em seus mais de 40 anos de história, já foi um point da juventude belo-horizontina, sendo palco de inúmeros eventos culturais e esportivos, como os bailes funk e os jogos de futebol de salão. Diz a lenda que até o capeta foi atraído pela recepção calorosa de Chico e as batalhas de dança.
Marco Aurélio Gonçalves, engenheiro de minas e carnavalesco, foi uma das pessoas que frequentou o espaço, que em janeiro deste ano teve três das quadras demolidas. Aos 56 anos, ele contou ao Estado de Minas do tempo em que frequentava as Quadras do Vilarinho com irmãos e primos quando ainda era um adolescente, de 14. ”Era um programa familiar. Foi uma época muito interessante, quando o Rock nacional estava em evidência”, disse.
Alcione, Beth Carvalho, Elza Soares, Sandra de Sá, Leci Brandão e Martinho da Vila aram pela quadra em suas noites badaladas, lista o engenheiro, para quem o espaço de Venda Nova era “nosso Rock in Rio”. Além de atrair nomes famosos, as quadras eram o ponto onde a bateria da escola de samba Mocidade Independente de Venda Nova, hoje extinta, ensaiava, completou.
“A minha juventude foi toda lá”, afirmou Renato Ventura, de 53, que caracteriza o auge da Quadra Vilarinho como “épico”. Gerontólogo, bailarino e profissional de educação física, ele contou que tinha um grupo de dança, o Renegados do Funk, e todo final de semana ia para o espaço praticar e participar de competições da modalidade. Para ele, a quadra era sinônimo de lazer e diversão: “Só quem viveu a época sabe”, disse, emocionado.
“De todo jeito tentaram apagar o Vilarinho do cenário cultural de Belo Horizonte, pelo desprezo dos tais ‘formadores de opinião’ e elitistas. Afinal, inconcebível seria itir que Venda Nova fosse também o epicentro cultural da juventude da cidade”, escreveu Marco Aurélio em suas redes sociais nos dias que antecederam a demolição de parte do espaço, que, para a tristeza de Francisco, precisou ser fechado durante a pandemia. Em janeiro deste ano, à reportagem, o proprietário contou que a pandemia foi crucial em sua decisão de vender imóveis que possuía, inclusive as Quadras Vilarinho, que confessou ser o único que não queria vender.
‘Capeta’ da Vilarinho
A trajetória, a importância e a marca na vida de muitas pessoas seriam suficientes para deixar o nome de Francisco Filizzola marcado na história de Venda Nova, mas ele foi além deixando, literalmente, uma lenda para ser contada por muitos anos mais: o Capeta da Vilarinho. Em 2021, Chico contou ao Estado de Minas a história por trás da lenda, que ele considera uma jogada de marketing produzida pelo acaso.
De acordo com ele, uma noite, um dos vigilantes das quadras, “que gostava de uma birita”, ligou dizendo que havia dois “capetas” no local. O proprietário, em tom de brincadeira, disse para o segurança chamar a polícia. No entanto, o segurança levou a sério e acabou registrando um boletim de ocorrência.
Na época, uma radialista comprou a história e ou para frente durante o programa de reportagens policiais de que fazia parte. O caso foi noticiado por outros veículos de imprensa e a história tomou grandes proporções, tornando-se parte da vida dos frequentadores.
O “coisa ruim” de Venda Nova virou personagem de uma revista, e a história rendeu até uma nota no jornal “The New York Times”. Mas, o capeta não foi bem quisto por todos. Na época, um padre de uma igreja da região tentou realizar um exorcismo. “Ele chegou todo paramentado, com os instrumentos de exorcismo e me pediu permissão para a cerimônia”, contou Francisco Filizzola. “Deixei que entrasse e fizesse o serviço, é claro”, completou.
Em 1988, mais uma vez a vida de Ricardo Malta se entrelaçou com a trajetória de Francisco e as Quadras da Vilarinho. Naquele ano, ele derrotou o ‘capeta’ na pista de dança.
*Estagiária sob supervisão do subeditor Humberto Santos