Annie Ernaux faz viagem no tempo em busca do sexo perdido
Primeira mulher sa a ganhar Nobel de Literatura volta ao verão de 1958 para narrar, em 'Memória de menina', impacto da primeira experiência sexual
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Siga no“Não consigo escrever a sequência cronológica se não for pulando de uma imagem para outra, de uma cena para outra, cuja duração real não deve ter ado de alguns minutos, talvez segundos, mas que foi desmesuradamente distendida na memória, como se ela acrescentasse um pouco mais de tempo a cada agem.” Nesta agem de “Memória de menina” (Fósforo), ao compartilhar o que considera uma limitação, a escritora sa Annie Ernaux acaba nos oferecendo uma descrição precisa de seu método de criação: transformar um amontoado desordenado de lembranças e sensações em narrativas confessionais e minuciosas, quase sempre em tom austero, muitas vezes arrebatadoras.
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Lançado em 2016 na França, “Mémoire de fille” é o mais recente livro editado no Brasil da Nobel de Literatura de 2022. Com tradução de Mariana Delfini, “Memória de menina” é descrito pela autora como “uma narrativa de uma travessia perigosa até o porto da escrita” e tem como ponto de partida o verão de 1958. Então com 17 anos, a adolescente Annie saiu da cidade natal para trabalhar como monitora em uma colônia de férias na Normandia. Lá fez sexo pela primeira vez e, dez anos antes da revolução de costumes de Maio de 1968, viveu intensamente cada momento a ponto de se denominar “uma vanguardista da liberdade sexual”. “ei uma noite inteira na cama com o monitor-chefe (...). Também fui para a cama com um dos monitores de educação física na noite seguinte. É isso, sou amoral e cínica. O pior é que não sinto nenhum remorso. No fundo, é tão simples que dois minutos depois nem penso mais nisso”, escreve a uma amiga, no fim de agosto daquele ano.
Aos 84 anos, Annie Ernaux ite que a motivação para “Memória de menina” veio da iminência da finitude. “A ideia de que eu poderia morrer sem ter escrito sobre ela, que muito cedo chamei de ‘a menina de 58’, me assombra”, revela, acrescentando que a obra pode ser “um último livro, como há um último amante e uma última primavera”. E ela quis deixar registrado essa etapa crucial da vida, ainda que por meio de uma memória que “falha ao tentar restituir o estado psíquico criado pela imbricação do desejo e do proibido, a espera de uma experiência sagrada e o medo de ‘perder a virgindade’, o precioso sangue, a prova, o estigma, que é preciso guardar no armário debaixo das roupas”.
Além do sexo, ou também por causa dele, Ernaux narra que viveu em 1958, cercada por centenas de crianças e jovens da idade dela, “a euforia de ser tudo, como se nossa juventude fosse multiplicada pela dos outros – a embriaguez comunitária.” O desconcerto da inédita convivência com meninos, a descoberta de livros e filmes como “Hiroshima, meu amor” (“O gosto de prender a respiração ao ver os corpos enroscados de Emmanuelle Riva e do japonês”, lembra), as músicas obscenas, danças, risos, bagunças, uma vivência “com a leveza de estar livre dos olhos de sua mãe” que não se desenrola sem instantes de angústia e de descontrole. Desconfortável com os olhares que recebe de conhecidos e estranhos, oscila entre longos jejuns e compulsão alimentar. “Não consegue se segurar e devora, escondido, direto da saladeira, pedaços de tomate cortados para as crianças da enfermaria.” E tem dificuldades para superar os momentos mais difíceis que ou: “Ter recebido as chaves para entender a vergonha não confere o poder de apagá-la”.
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Mesmo com a citação de fatos históricos ocorridos na segunda metade dos anos 1950 e o início da década de 1960, como os protestos pela Guerra da Argélia ou a morte de Albert Camus, “Memória de menina” não tem a assumida ambição de “Os anos”, ainda o livro de maior impacto da primeira mulher sa a ganhar o Nobel de Literatura. “Em ‘Os anos’, realmente coloquei o coletivo no centro. O truque é encontrar a forma adequada. Na escrita, não bastam ideias, é preciso torná-las sensíveis”, afirmou ao repórter Ruan Gabriel, de O Globo, ao receber o jornalista brasileiro em sua casa na cidade de Cergy-Pontoise, a uma hora de Paris.
O mais recente livro de Annie Ernaux publicado no Brasil é outro bem-sucedido experimento da mistura que a autora assim definiu em “Uma mulher”, escrito para buscar uma verdade sobre a mãe que, segundo ela, poderia ser alcançada somente por meio das palavras: “O que espero escrever de mais exato, se situa, sem dúvida, na articulação entre o familiar e o social, o mito e a história.”
Com “Memória de menina”, Ernaux consegue, novamente, realizar uma das missões mais difíceis, quase impossíveis, confiadas aos escritores que utilizam as próprias lembranças como âncora e farol, por ela definida perto do ponto final: “Explorar o abismo entre a assombrosa realidade daquilo que acontece, no momento em que acontece, e a estranha irrealidade em que, anos depois, aquilo que aconteceu se transforma.”
“Memória de menina”
(Trecho do livro de Annie Ernaux, com tradução de Mariana Delfim)
“Às vezes levanto a cabeça da minha página, saio desse olhar para dentro que me torna indiferente a tudo que me cerca. Vejo a mim mesma da maneira com que alguém poderia me observar de fora, a partir do corredor estreito que vem do alto margeando a cortina de abetos: sentada numa escrivaninha pequena, posicionada contra a janela, iluminada por um abajur grande, imagem convencional, que agrada bastante (me pediram muitas vezes para posar assim para os jornais ou para a tv. Eu me pergunto o que significa isso, uma mulher reando cenas de mais de cinquenta anos, às quais sua memória não pode acrescentar nada de novo. Por acreditar em quê, senão que a memória é uma forma de conhecimento? E que desejo – que ultraa o de compreender – existe nessa tenacidade de encontrar, entre milhares de substantivos, verbos e adjetivos, aqueles que darão a certeza – a ilusão – de ter atingido o maior grau possível de realidade? Apenas a esperança de que exista ao menos um pingo de semelhança entre essa menina, Annie D., e qualquer outra.”
“O ado é o futuro da minha narrativa.”
“Comecei a me transformar em um ser literário, alguém que vive as coisas como se elas precisassem um dia ser escritas.”
“É a falta de sentido do que vivemos, no momento em que vivemos, que multiplica as possibilidades da escrita.”
Annie Ernaux
em “Memória de menina”
“Memória de menina”
• De Annie Ernaux
• Tradução de Mariana Delfini
• Fósforo
• 144 páginas
• R$ 69,90
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