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Vítima da ditadura

Ainda Estou Aqui: a atuação política de Rubens Paiva não contada em filme

O EM ou os arquivos da Câmara para contar como o engenheiro de "Ainda estou aqui" dedicou seu mandato a uma I contra conspiração anticomunista

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O Brasil e o mundo têm se emocionado com a história do sequestro e assassinato do ex-deputado federal Rubens Paiva – e o posterior drama envolvendo sua família, na figura de Eunice Paiva (Fernanda Torres) – retratada no filme “Ainda estou aqui”, de Walter Salles. Diante da repercussão da produção que pode dar ao país a sua primeira estatueta do Oscar, o Estado de Minas consultou os arquivos da Câmara dos Deputados para contar, em detalhes, como foi o mandato de Paiva na Casa, iniciado em 1963 e cassado no ano seguinte pelo Ato Institucional nº 1 (AI-1), editado no dia anterior ao golpe pela junta militar.

 

Engenheiro civil de carreira, Rubens Paiva foi eleito em outubro de 1962 pelo PTB – legenda criada em 1945 por Getúlio Vargas e extinta em 1965, sem relação direta com o outro PTB, este criado em 1979 e extinto em 2023. Paiva recebeu 13.440 votos à época ao concorrer por São Paulo, o suficiente para compor a bancada de 116 parlamentares do partido na Câmara – a segunda maior, atrás apenas do PSD.

O PTB, liderado por Leonel Brizola, assim como Rubens Paiva, era governista. Andava de mãos dadas com os interesses do presidente da República eleito, João Goulart – também integrante da legenda trabalhista.



Nos arquivos da Câmara dos Deputados, há registro de cinco discursos de Rubens Paiva no plenário da Casa. Eles se dividem entre assuntos ligados à geopolítica e relacionados à Comissão Parlamentar de Inquérito (I) do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), instituída em 1963. O objetivo da I era investigar o financiamento ilícito de campanhas críticas ao comunismo por parte dos Estados Unidos – uma clara ofensiva contra a influência da União Soviética na América Latina durante a Guerra Fria.

A operação do Ibad nas eleições de 1962 é entendida, historicamente, como uma medida preparatória para o golpe de 1964. Rubens Paiva, posteriormente assassinado pela ditadura, era vice-presidente da I – uma das principais razões para sua futura perseguição pelo regime militar.



Os registros da Câmara evidenciam a postura combativa do deputado do PTB no âmbito da I. Em 5 de setembro de 1963, Paiva se envolveu em uma discussão com o deputado federal Clóvis Motta, seu correligionário no PTB do Rio Grande do Norte, então vice-presidente da Mesa Diretora da Câmara. Como vice-presidente da I do Ibad, Rubens estava incomodado com a falta de agendas do grupo para dar prosseguimento aos trabalhos investigativos.



A marcação dos compromissos cabia ao presidente da I, deputado Peracchi Barcellos (PSD-RS), mas o parlamentar gaúcho dificultava o andamento dos trabalhos nos bastidores. Diante disso, Rubens Paiva apresentou uma questão de ordem para que ele, como vice-presidente da I, comandasse os trabalhos. “Em nenhuma circunstância se deve suspender os trabalhos de uma comissão de inquérito. Caso o senhor Peracchi Barcellos não volte a convocar [agendas da I], poderei eu convocar, para o bem do povo brasileiro, o depoimento do senhor Ivan Hasslocher para esclarecimentos?”, questionou Paiva no plenário.

Peracchi Barcellos, como presidente da I, se manifestou na sequência. Ele colocou a culpa do atraso no depoimento de Hasslocher no então presidente da República, João Goulart, aliado de Paiva. “Quem impediu o depoimento do senhor Ivan Hasslocher, que estava convocado para depor, foi o presidente da República ao colocá-lo quase como um réu, não como testemunha”, disse.

Mas, por qual motivo havia tanto interesse em ouvir Ivan Hasslocher? Como agente da CIA, era fundador do Ibad e principal operador do esquema de corrupção, ante a propaganda anticomunista patrocinada pelo governo de John F. Kennedy. Uma das principais atuações de Hasslocher se dava a partir da agência de publicidade Promotion S/A, que pagava gordas comissões aos veículos de imprensa em troca da divulgação de peças anticomunistas.



Outro braço de Hasslocher era a Ação Democrática Popular (Adep). Por meio da Adep, ele influenciou as eleições de 1962 ao financiar campanhas de deputados federais e estaduais. Em troca, ganharia apoio deles no Congresso e nas Assembleias para dar andamento à agenda estadunidense em um contexto de Guerra Fria – período no qual os EUA foram a principal bandeira do bloco capitalista em aversão ao comunismo capitaneado pela União Soviética.



Geopolítica nos microfones



Em outros dois discursos no plenário da Câmara, esses mais breves, Rubens Paiva tratou de temas ligados às relações exteriores. Em 7 de novembro de 1963, apresentou um requerimento para convocar o Itamaraty, à época comandado pelo diplomata João Augusto de Araújo Castro, a prestar esclarecimentos sobre a Carta de Punta del Este, assinada pelo Brasil dois anos antes.

Assim como no caso do Ibad, o documento alvo do requerimento de Paiva tinha como objetivo conter o comunismo na América Latina. Elaborado pelo governo de John Kennedy, a carta lançou a Aliança para o Progresso em 1961, com intuito de trazer desenvolvimento para 22 países latino-americanos signatários. Só Cuba não aderiu, evidentemente por sua proximidade com a União Soviética.



A previsão era de um investimento de US$ 20 bilhões em uma década, mas a promessa não se concretizou. Por fim, o plano criticado por Rubens Paiva pouco mudou a realidade dos latino-americanos. O pano de fundo, assim como no caso do Ibad, era aumentar a influência estadunidense nos países do continente e gestar as ditaduras militares posteriormente instaladas sob patrocínio dos EUA. Meses antes, em 5 de setembro de 1963, Paiva elogiou o então ministro da Fazenda, Carvalho Pinto, novamente em contexto diplomático.

“O pronunciamento do ministro em resposta ao jornal New York Times, em que repele a intervenção [dos EUA] na nossa vida econômica, e o convite feito por ele ao Marechal Tito [Josip Broz Tito, presidente da Iugoslávia ligado ao comunismo, que se manteve no poder de 1953 até sua morte, em 1980] para que visite o Brasil são exemplos de independência da nossa política externa”, disse.



O histórico discurso

Após o golpe militar de 1964, Rubens Paiva usou a Rádio Nacional, uma estação pública, para reagir à ditadura em 1º de abril daquele ano. Como era característico em sua atuação política, o discurso foi objetivo, combativo e mobilizador. As falas se dirigiam, principalmente, a trabalhadores e estudantes de São Paulo, estado pelo qual havia sido eleito em 1962.  

“Eu me dirijo, especialmente, a todos os trabalhadores, estudantes e a todo povo de São Paulo. Estou infelicitado por esse governo golpista que, neste momento, vem traindo seu mandato e se pondo ao lado das forças da reação”, disse ele logo na introdução.

Posteriormente, Rubens Paiva conclamou a resistência de diversos grupos sociais contra a ditadura. Citou portuários e metalúrgicos da Baixada Santista, região onde nasceu em 1929. Também lembrou dos universitários e suas entidades representativas. “Todos, em greve geral, devem dar solidariedade integral à legalidade, que ora representa o presidente João Goulart. O nosso presidente, ao tomar as medidas tão reclamadas por todo o nosso povo, medidas que nos conduzirão, indiscutivelmente, à nossa emancipação política e econômica definitiva”, afirmou.

O discurso finaliza com Rubens Paiva ressaltando que a política de João Goulart incomodou as elites financeiras do país. “[João Goulart] prejudicou os interesses de uma pequena minoria em nossas terras. Pequena minoria, entretanto, que detém um grande poder. Todo o poder econômico deste país. Todos os órgãos de divulgação, os grandes jornais e as estações de televisão. É indispensável, portanto, que todo o povo brasileiro, trabalhadores e estudantes de São Paulo, em especial, estejam atentos às palavras de ordem que emanarem aqui da Rádio Nacional”, disse.



Os pormenores de um crime sem castigo



José Antônio Nogueira Belham, Rubens Paim Sampaio, Raymundo Ronaldo Campos, Antônio Fernando Hughes de Carvalho, Paulo Malhães, Jurandyr e Jacy Ochsendorf e Souza. Parte da história sobre a vida de Rubens Paiva a pela citação daqueles que participaram dos crimes que resultaram em sua morte, em janeiro de 1971, no Rio de Janeiro, em local até hoje indefinido, ainda que haja a certeza de que o crime aconteceu nas dependências do Exército.
A história da morte do ex-deputado é contada no livro “Crime sem castigo: como os militares mataram Rubens Paiva”, da jornalista e escritora Juliana Dal Piva, recém-lançado no Brasil. A obra mostra como foi a trama militar que espionou, sequestrou, torturou e matou Paiva, com ocultação do corpo, que nunca foi encontrado.

O livro é construído com base, principalmente, em arquivos públicos da ditadura guardados no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro. E também depoimentos e documentos produzidos durante as investigações da Comissão Nacional da Verdade e do Ministério Público Federal (MPF).

Rubens Paiva foi preso, sem mandado, em 20/1/1971. Como mostram o livro “Ainda estou aqui” (2014), escrito pelo filho dele, Marcelo Rubens Paiva, e o filme homônimo de Walter Salles, o ex-deputado se despediu da família e saiu de casa em seu próprio carro – posteriormente resgatado por sua irmã nas dependências do Exército, e nunca voltou. No dia seguinte, a esposa, Eunice, e a filha mais velha do casal, Eliana, de 15 anos, também detidas para interrogatório. A mãe deixou o cárcere após 12 dias, e a filha, cerca de 24 horas depois.

Os arquivos consultados por Dal Piva e as investigações da Comissão da Verdade e do MPF deixam lacunas sobre o que realmente aconteceu com Rubens Paiva. Ainda que persistam dúvidas, como o paradeiro do corpo e a data exata da morte, alguns fatos são comprovados pelos trabalhos até hoje conduzidos. O objetivo dos militares era “abaixar a poeira” do desaparecimento, até mesmo para dar tempo de montar uma farsa para mascarar os fatos.

O plano foi confessado anos depois por Raymundo Ronaldo Campos, um dos réus no processo. Com a ajuda dos irmãos Jurandyr e Jacy Ochsendorf e Souza, ele atirou e pôs fogo em um Fusca nas imediações da unidade militar onde trabalhava. O objetivo? Forjar resgate de Rubens Paiva por “terroristas ligados ao comunismo”.



Morte e ocultação 



Rubens Paiva foi duramente torturado até a morte. O depoimento do coronel Armando Avólio Filho à Comissão da Verdade, em 2013, elucida o papel do também militar Antônio Fernando Hughes de Carvalho nas violações dos direitos humanos – apesar de a testemunha não ter identificado o nome exato de Hughes no depoimento, já que o registro só foi confirmado após desdobramentos do MPF.

“Ele viu um cidadão pulando em cima de um corpo volumoso. Um homem mais volumoso e tal. [...] Ele disse: “fui ao meu chefe imediato, comuniquei o que estava ando lá. Se o senhor não tomar providência, vai morrer”. Ele bateu continência e foi embora”, diz, em entrevista à autora, o ex-procurador-geral da República Claudio Fonteles sobre a conversa que teve com o coronel Avólio, uma das principais testemunhas do caso Rubens Paiva, durante os trabalhos da Comissão da Verdade.

Hughes, o militar que pulou em cima do ex-deputado, morreu em 2005 e nunca foi julgado por seus crimes. Mas ele não é o único. O general da reserva José Antônio Nogueira Belham comandava o Departamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa (DOI-Codi) à época. As ordens para torturar, matar e ocultar o cadáver de Rubens Paiva, no mínimo, tiveram anuência dele.

A parte da ocultação do corpo também merece destaque. Um dos principais depoimentos colhidos por jornalistas e também pelas autoridades na década ada é do tenente-coronel Paulo Malhães. Em 2014, ele concedeu entrevistas que dão detalhes sobre como a ditadura agiu para que o corpo do ex-deputado nunca fosse encontrado.

Segundo Malhães, Paiva foi enterrado em dois locais diferentes – o último deles numa praia na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Com receio de que o corpo fosse encontrado, os militares, mais precisamente Malhães, o jogaram em um rio. Meses após a confissão, o tenente-coronel foi morto em um controverso assassinato em seu sítio em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. A Polícia Civil investigou e concluiu o caso como latrocínio (roubo seguido de morte).

Apesar das evidências colhidas pelo MPF e da denúncia apresentada à Justiça Federal, os cinco militares nunca pagaram pelo crime. Só estão vivos hoje o general José Antônio Nogueira Belham (comandante do DOI-Codi à época) e Jacy Ochsendorf e Souza, que participou da fraude processual com o Fusca. Rubens Paim Sampaio, Raymundo Ronaldo Campos e Jurandyr Ochsendorf e Souza morreram nos últimos anos.

Os réus se apegam a um recurso que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) desde 2017. O processo estava sob responsabilidade do ex-ministro Teori Zavascki, que morreu em acidente aéreo. Desde então, está nas mãos de Alexandre de Moraes.

Segundo Juliana Dal Piva, os dois acusados ainda vivos recebem aposentadoria de R$ 59,4 mil. E  União paga R$ 80,7 mil em pensões a oito familiares dos demais réus que já morreram. No total, a sociedade brasileira paga R$ 140,2 mil mensais aos algozes de Rubens Paiva.


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