
Na poltrona de número 14B do voo 4279 entre Maringá (PR) e Campinas (SP), uma mulher branca, de aproximadamente 60 anos, me olha incessantemente e se espreme na poltrona ao lado, a 14A. Com medo de encostar em mim, ela segue sem conseguir tirar os olhos, incrédula. Sequer responde ao meu “Boa tarde, com licença”. Ela é magra. Eu, como vocês sabem, gorda.
Não é a primeira vez que isso ocorre num voo e nem será a última. Logo adiante, no ônibus que retira os ageiros da aeronave e leva até o hangar, a cena é um pouco diferente: me sento numa poltrona e a do meu lado vai vazia. As pessoas preferem se equilibrar e se esgueirar por entre as bagagens, em pé, a se sentarem do meu lado. Reclamo no Twitter porque estou desocupada, mas, sigo a vida. Tenho muito a fazer.
Na memória, penso nos dias vividos em Maringá para o projeto “Me chama de gorda”, idealizado pela atriz Aline Luppi e pela produtora cultural Rachel Coelho. É minha primeira vez na cidade paraense e estou completamente apaixonada: pelas pessoas, pelas ruas floridas com ipês roxos, pelo mercadão da cidade, pela gastronomia e, sobretudo, pelos encontros que foram possíveis.
E é só porque estes encontros são possíveis e eu, como disse na oficina “Lute como uma gorda”, transformo minha raiva em criação, é que consigo ressignificar a gordofobia cotidiana. Os olhares que anulam, como o da senhora que viajou ao meu lado no avião, como os das pessoas que recusaram o assento ao meu lado no ônibus, como todos os enviesados que despertamos: de crianças a idosos - sem esquecer dos adultos - no Parque do Ingá, também em Maringá.
A possibilidade de recontar nossas próprias histórias, como bem diz Aline Luppi no texto de abertura do projeto “mostrando a bunda e a banha” é o que nos devolve a humanidade roubada por tais olhares. É o que nos devolve para nosso próprio corpo, tomado com tanta violência a partir de quem, sem dizer uma palavra, nos lembra que estamos dissidindo da norma ao existir e ousar ocupar os mesmos espaços.
Como nos lembra Paul Preciado em "Testo Junkie": “Eis aqui o desafio e a tentação de toda filosofia: correr atrás do corpo ou da cabeça. Mas e se a resposta fosse o próprio ato do mestre? Se a possibilidade da filosofia residisse não tanto na escolha entre a cabeça ou o corpo, e sim na prática lúcida e intencional da autodecapitação">
No entanto, que gostoso criar bolhas e ficar dentro da proteção delas. Que bom que é podermos ter espaços para sermos quem somos e, mais do que isso: formar novos pensamentos - e pessoas, jovens, menos gordofóbicos. Que privilégio viver isso.
Em tempo, vale lembrar que o projeto “Me Chama de Gorda’ começou no dia 25 de junho com uma série de intervenções performáticas pensadas e encenadas por Aline Luppi Grossi, como a “Trocando olhares”, a “Entre Quatro paredes”, a “Soul dessas/Beija eu”, “O que você anda engolindo">Jup do Bairro.
Todas as ações foram gratuitas e estimulam o debate acerca do corpo gordo a partir da arte. Elas revelam como a exclusão social e o estigma podem marcar uma existência, mas também evidenciam o corpo gordo e enaltecem o trabalho de outras mulheres gordas país afora.
O projeto reforça que o uso da palavra gorda, por vezes tão desviado, pode não ser pejorativo, mas definir apenas o que é: um corpo, sem conotação negativa, ofensiva ou xingamento. Uma existência.
Até lá, fica a máxima, que vale não apenas para o projeto, para a situação do avião, mas para o dia a dia. Não tenha medo. Vai, fala: ME CHAMA DE GORDA!