"Capítulo 3: Nem meu nome eu falo hoje" faz temporada gratuita em BH
Peça documental da Maldita Cia. de Investigação Teatral, baseada em relatório da Comissão da Verdade em Minas Gerais, tem sessões desta quinta (15/5) a domingo
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Em 9 de maio de 1976, agentes do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) foram até o Diretório Central dos Estudantes (DCE) da então Universidade Católica de Minas Gerais – hoje Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais –, no Bairro Coração Eucarístico. A ordem era prender a estudante Emely Vieira Salazar por subversão da ordem política e social e propaganda subversiva.
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À época com 31 anos e prestes a concluir o curso de Psicologia, Emely não entendeu o que estava acontecendo. Não era militante do Partido Comunista, tampouco integrava movimentos revolucionários. O pretexto para a prisão, era o fato de ela ocupar a vice-presidência do DCE “e decidir que iria denunciar a tortura. Foi o que a gente fez”, ela afirma.
Intimação
Emely acreditava que a intimação era um mal-entendido que se resolveria rapidamente. Não foi assim. Ela ou dois anos presa – os dois primeiros meses na antiga sede do Dops, na Avenida Afonso Pena. Foi torturada com choques elétricos, pendurada no pau de arara e espancada.
Conforme relatou à Comissão da Verdade em Minas Gerais, certa vez levou tantas palmatórias que não conseguia segurar nada com as mãos devido ao inchaço. Em outra ocasião, desmaiou e teve que ser carregada no colo.
Numa das sessões de tortura, reconheceu o médico do Dops: ele era professor da Faculdade de Medicina da UFMG, onde Emely trabalhava como secretária de ensino. A princípio, sentiu alívio ao vê-lo. Logo percebeu que ele fazia parte da engrenagem repressiva do estado. O médico a examinou e disse: “Ela aguenta mais. Pode bater”.
“Esse foi o presente de formatura que ganhei”, diz Emely, com bom humor. A leveza com que fala sobre o ado revela como a psicóloga, hoje com 80 anos, lida com a própria história. E é justamente a história de Emely que a Maldita Cia. de Investigação Teatral conta no espetáculo “Capítulo 3: Nem meu nome eu falo hoje”.
A peça estreia nesta quinta-feira (15/5), no Viaduto das Artes, e segue em cartaz no sábado e no domingo. Todas as apresentações são gratuitas. Com direção de Amaury Borges e dramaturgia de Anderson Feliciano e Elba Rocha, “Capítulo 3…” parte da trajetória de Emely para abordar um trauma recente da história do Brasil, que ainda ecoa em gerações que não viveram os anos de chumbo.
Ao mesmo tempo em que recupera a juventude de uma garota de Araçuaí, que chegou à capital mineira ainda pequena e foi cantora na Rádio Guarani, o espetáculo também questiona quem foram os homens que se dispam a torturá-la durante o regime militar, e por que fizeram isso.
Para essa reflexão, a dramaturgia se apoia em elementos do imaginário brasileiro que contribuíram para moldar uma identidade social permeada pela repressão, sobretudo entre os homens. Brincadeiras como “polícia e ladrão” e efemérides como o Dia do Soldado ajudam a explicar uma cultura masculina que exalta a militarização.
A história de Emely chegou ao grupo a partir de uma imersão, realizada nos últimos anos, em documentos e registros que buscavam lançar luz sobre os acontecimentos da ditadura militar em Minas Gerais. “No relatório (da Comissão da Verdade de MG), o termo ‘transgeracional’ era recorrente. Era uma forma de dizer que o trauma da tortura foi transmitido por gerações. Então, seguimos essa ideia para encontrar um ponto de interseção entre nossas biografias e esse período da história”, explica Elba Rocha.
Ela também integra o elenco da montagem, ao lado de Lenine Martins. Os dois encenam uma espécie de jogo de luz e sombra, de gato e rato, que revela ao espectador a experiência de Emely na prisão sem, no entanto, cair na espetacularização do sofrimento.
Há também episódios curiosos desse período, como a resposta que Emely deu ao diretor do presídio de Juiz de Fora – após dois meses no Dops, ela foi transferida para o complexo penitenciário feminino no Bairro Horto e, em seguida, para a cidade da Zona da Mata mineira. O diretor queria saber se a instalação de chuveiros quentes melhoraria a condição das detentas.
“Eu falei pra ele: ‘O senhor pode colocar até um filé pra gente comer que não vai mudar nada. Cadeia é cadeia. Não melhora’”, lembra Emely.
Foi ainda no presídio que ela exerceu pela primeira vez a profissão de psicóloga depois de formada. Suas colegas de cela foram suas primeiras pacientes.
“‘Capítulo 3…’ procura embaralhar nossas biografias, nossas histórias pessoais, com as da Emely – e também com os documentos públicos que encontramos durante a pesquisa”, diz Elba. “É uma história que denuncia dor e violência. Mas é também uma história coletiva, que nos pertence.”
Emely participará de todas as apresentações da peça, no palco. Sem perder o bom humor, ela faz uma confissão: “Ainda nem sei o que vou fazer. Pediram para eu ir lá e ficar no palco. Acho que devo contar algumas dessas minhas histórias”.
“CAPÍTULO 3: NEM MEU NOME EU FALO HOJE”
Texto: Anderson Feliciano e Elba Rocha. Direção: Amaury Borges. Com Elba Rocha, Lenine Martins e Emely Vieira Salazar. Nesta quinta-feira (15/5), às 20h; sábado, às 11h e às 17h; e domingo, às 17h; no Viaduto das Artes (Av. Olinto Meireles, 45, Barreiro). Entrada franca, mediante retirada do ingresso no site do Sympla ou na bilheteria, uma hora antes de cada sessão.