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Vargas Llosa destacou 'labirinto verbal' de 'Grande sertão: veredas'

Escritor peruano analisou, em artigo, as múltiplas interpretações possíveis para o livro de Guimarães Rosa, que chamou de 'catedral repleta de símbolos'

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Em 1967, o peruano Mario Vargas Llosa publicou o artigo “Epopeia do sertão, Torre de Babel ou manual de satanismo">Guimarães Rosa e revisto em 1990 para a coletânea de ensaios “Sabres e utopias: Visões da América Latina”, publicado no Brasil pela editora Objetiva, com tradução de Bernardo Ajzenberg. Leia trechos do artigo.


“Em um célebre ensaio, W. H. Auden afirma que o valor literário de um livro pode ser medido pelo número de leituras diferentes que ele possibilita. Essa observação encontra em “Grande sertão: veredas” um maravilhoso exemplo, pois a obra, tão enigmática e multifacetada como o seu autor, é, na verdade, um somatório de livros de distintas naturezas. Uma leitura rápida, ingênua, que atente apenas para a vertiginosa sequência de episódios que compõem o fio narrativo do romance e salte sem compromisso sobre os obstáculos e as dificuldades de estilo, propiciará ao leitor uma maravilhosa epopeia de costumes do sertão, um romance de ação elaborado com uma rigorosa observância das regras do gênero: dramaticidade, exotismo, movimento, suspense, natureza indômita, personagens sugestivos e brutais.

(...)

No que se refere apenas ao seu enredo, “Grande sertão: veredas” é um romance regional de grande fôlego, do qual não estão ausentes certos vícios típicos do gênero: excesso descritivo, certo excesso “telúrico”, o abuso no uso de dados geográficos e de informações folclóricas e a inverossimilhança de algumas situações (como a súbita revelação final de que Diadorim é mulher). Uma leitura mais experiente e detida, que não se esquive, ao contrário, enfrente de forma resoluta a complexidade linguística do romance, descobrirá, no entanto, que aquela realidade de paisagens inóspitas, sangue, carne humana e objetos curiosos não é a matéria profunda de “Grande sertão: veredas”, não é o conteúdo essencial do livro, mas mero pretexto, simples aparência, e que a realidade fundamental captada e expressa pelo autor em seu livro não é material nem histórica, mas atemporal e abstrata: uma realidade verbal. Pois a presença mais impetuosa no monólogo ininterrupto de Riobaldo não é a da vertigem de ações que se sucedem, nem a dos homens nem as coisas que menciona, nem mesmo sua oscilante e vacilante paixão homossexual por Diadorim: é a sua própria palavra, sua expressão.


Esse improvável rio sonoro, que avança como uma torrente, que carrega em suas estranhas águas metáforas, substantivos, adjetivos, verbos e expressões, forjados, manipulados e organizados de tal forma que adquiriram soberania e não aludam a nenhuma outra realidade que não a que eles próprios vão criando, prodigiosamente, no curso avassalador do relato de Riobaldo. Assim como as cores de uma pintura abstrata se emanciparam da realidade de onde provinham para formar uma realidade diferente e única, ou como os sons adquirem no interior de uma composição musical uma natureza própria e autônoma, a linguagem, nesse romance, conquistou uma espécie de independência autárquica.

É autossuficiente, começa e se encerra nela mesma. Lido dessa forma, em que nos deixamos levar por seu feitiço fonético, sucumbindo à sua magia verbal, o romance de Guimarães Rosa se apresenta como uma Torre de Babel milagrosamente suspensa sobre a realidade humana, sem contato com ela e, no entanto, viva, como uma construção mais próxima da música (ou de uma certa poesia) do que da literatura.

Guimarães rosa, obra reverenciada por LLosa
Guimarães rosa, obra reverenciada por LLosa reprodução


Romance de aventuras, labirinto verbal: essas duas faces de “Grande sertão: veredas” não são excludentes. Tampouco esgotam o romance. O monólogo de Riobaldo frequentemente mistura inquietações fortes e traz afirmações obscuras que têm como tema recorrente a existência do demônio, com quem o narrador fez, ou acreditou ter feito, ou quer fazer seu interlocutor acreditar que ele fez, um pacto, em uma noite de tempestade, numa encruzilhada.

“Grande sertão: veredas” se apresenta não como um romance de aventuras ou como uma sinfonia, mas sim como uma alegoria religiosa do mal, uma obra atravessada por uma vibração mística e ameaçadora à distância, como a tradição do romance gótico inglês (“O monge”, “O castelo de Otranto” etc.). “O verdadeiro tema de “Grande sertão: veredas” é a possessão diabólica”, disse um crítico, afirmação absolutamente válida se partimos da leitura mais esotérica do livro. Dela se extrai que a realidade que o livro reflete com profundidade não é a da conduta humana, nem a da natureza, tampouco a da palavra: é a realidade da alma.


A odisseia de Riobaldo traz consigo, implícita, como um fio secreto a conduzi-la e a justificá-la, uma interrogação metafísica sobre o bem e o mal; é uma máscara por trás da qual se encontra, emboscada, uma demonstração dos poderes de Satã sobre a terra e os homens. O enredo, a linguagem e a estrutura do romance devem ser considerados como cifras, chaves, cujos significados profundos confluem para uma mística.

Nem romance de capa e espada, nem Torre de Babel: “Grande sertão: veredas” é uma catedral repleta de símbolos, uma espécie de templo maçônico (...). Guimarães Rosa construiu um romance ambíguo, múltiplo, destinado a durar por muito tempo, dificilmente apreensível em sua totalidade, enganoso e fascinante como a vida imediata, profundo e inesgotável, como a própria realidade. Trata-se, provavelmente, do mais elevado elogio que um autor poderia receber.”


‘‘Para se tornar homem é preciso correr riscos, ser audaz. Isso é o exército.’’

“A cidade e os cachorros”, 1963

“Cada soldado tem direito ao alívio. E o Estado deve garanti-lo.”

“Pantaleão e as visitadoras”, 1974


“A fantasia é o lugar onde a verdade se despe.”

“Elogio da madrasta”, 1988


“A odisseia de Riobaldo traz consigo, implícita, como um fio secreto a conduzi-la e a justificá-la, uma interrogação metafísica sobre o bem e o mal.”

“Sabres e utopias”, 2009

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